São Paulo, domingo, 20 de julho de 1997
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Nova nuvem; Ronda policial; Estrela azteca; Ao amigo, tudo. Aos outros, a lei; Uma grande aula de câmbio, por R$ 7,50; Quando o Dr. Rennó precisa de um, leva três; Henrique Cazes; CURSO MADAME NATACHA DE PIANO E PORTUGUÊS; De olho na conta

ELIO GASPARI
DE OLHO NA CONTA

Nova nuvem
Está correndo como rastilho de pólvora a idéia de o PT se afastar da eleição presidencial. Talvez não prospere, mas já tem aliados até no PPB.
A oposição já se deu conta de que, em condições normais de temperatura e pressão, FFHH é invencível. Pode perder se houver um dilúvio universal, mas, mesmo assim, teme-se que ele leve a arca e deixe aos outros a água.
Saindo de campo, o PT poderá discutir a legitimidade do pleito, coisa que fará tanto sentido quanto dizer que as pirâmides do Egito são redondas. No fundo, pretende-se tisnar o reflexo internacional da provável vitória de FFHH. Algum prejuízo essa manobra provoca. Resta saber se vale o preço da perda do palanque eletrônico.

Ronda policial
Está nas livrarias "Polícia no Rio de Janeiro - Repressão e Resistência numa Cidade do Século 19", do professor Thomas Holloway, da Universidade de Cornell. Para quem quiser passear pelo problema da polícia livrando-se da mediocridade dos personagens atuais, é uma leitura útil e instrutiva.
Como os problemas de hoje são parecidos com os do século passado, é melhor ler casos do padre Feijó e do chefe de polícia Eusébio de Queirós do que perder tempo com Divaldo Suruagy.
Holloway barateia um pouco sua opção preferencial pelos oprimidos, mas traça um belo perfil da sociedade segregacionista (inclusive para os brancos pobres) que se montou no Brasil. Descreve o Rio com primor.
O livro é uma aula.
Para quem gosta de Estado mínimo: em 1820 a Coroa oferecia aos senhores de escravos um serviço de açoites. Levavam os negros para a prisão do Calabouço e, sem perguntas, cobravam-se 160 réis por cem chicotadas. Trinta anos depois, os senhores reclamaram da brandura da tropa do Calabouço e de seu médico. O açoite terceirizado só parou de lanhar negros em 1873. (Nunca é demais lembrar que o poeta francês Charles Baudelaire -e não FFHH- criou a expressão "modernidade" dez anos antes, em 1863.)
Para quem acompanha a questão salarial dos PMs: em 1851 um PM ganhava um terço do salário de um mestre de obras e pouco mais do que se pagava a um escravo que trabalhava.
Holloway fecha o livro dizendo o seguinte:
- O desenvolvimento do aparelho de repressão foi progressivo e previdente. Possibilitou à elite política e econômica conservar a vantagem na guerra social e manter a ralé acuada. O Brasil convive com os resultados até hoje.

Estrela azteca
Desembarca em Porto Alegre na próxima semana o novo prefeito da Cidade do México, Cuauhtémoc Cárdenas. Vem para a sétima reunião do Fórum de São Paulo, grande conclave da esquerda latino-americana e caribenha. Juntará 500 pessoas, representando 60 partidos.

Ao amigo, tudo. Aos outros, a lei
Por sugestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, o Ministério Público do Rio de Janeiro está processando João Pedro Stedile, dirigente do movimento dos sem-terra. Rogue-se aos céus para que esse processo seja mandado ao arquivo pelo juiz encarregado de decidir se aceita a denúncia da promotoria. Se isso não acontecer, o presidente terá dado um tiro no próprio pé, outro na cabeça do PSDB e um terceiro na alma do distinto público.
O coração do processo está em duas frases ditas por Stedile durante uma entrevista coletiva, em maio. São as seguintes:
- Ocupem os terrenos baldios que estão lá só para especulação imobiliária.
- Se organize e pressione; faça manifestações na frente da Fiesp, na frente das fábricas que estão fechando pela política econômica do governo. E, se tiver fome, faça manifestação na frente dos supermercados.
Na primeira frase, Stedile sugeriu aos seus ouvintes a prática de ato ilegal. Os terrenos baldios têm dono e, desde que eles paguem os impostos, podem deixá-los vazios, sem que isso seja da conta dos sem-seja-lá-o-que-for. Se houve incitação, ficaram faltando os incitados, porque nem um só palmo de terra baldia foi invadido.
Caiu sobre a toga do juiz da 20ª Vara Criminal do Rio um problema que ele não ajudou a criar. Se o caso terminar com o condenação de Stedile, terá se produzido (dentro do processo legal) um dos maiores casos de dois pesos e duas medidas da história judicial brasileira.
Isso porque, uma semana antes da entrevista de Stedile, um grupo de sem-terra invadiu o gabinete do ministro do Planejamento, Antonio Kandir. Transformaram sua sala em mafuá, sentaram um peru em sua cadeira e armaram uma grande boca-livre de ligações telefônicas. A invasão foi chefiada por Francisco Urbano, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, a Contag. Não só ele fez aquilo que se acusa Stedile de ter sugerido que se fizesse, como avisou que voltaria a fazê-lo: "Vamos voltar a ocupar agências bancárias, propriedades e prédios públicos".
A invasão do ministério levou o Palácio do Planalto a um ataque de nervos. Ameaçou intervir na PM do Distrito Federal, como se ela, e não os baderneiros, devesse receber um corretivo em nome da ordem. (Quando começaram a pipocar casos de insubordinação explícita das PMs em Estados governados por tucanos e governadores amigos a valentia do Planalto virou suco.)
Não se disse uma só palavra contra Francisco Urbano. Processá-lo, nem pensar. Francisco Urbano é um grão-tucano, membro da Comissão Executiva Nacional do PSDB. Para ele, a lei não vale.
Na sua segunda frase, Stedile incitou a plebe a se manifestar diante dos supermercados. Pode-se argumentar que uma manifestação de famintos diante de um supermercado abre o apetite para um saque, mas é penoso condenar uma pessoa por sugerir manifestações que podem degenerar em saques, se nenhuma das duas coisas aconteceu.
E se Stedile tivesse formulado sua frase de outra maneira? Talvez assim: "Organizem-se, dêem-se as mãos. Não peçam, exijam". Teria sido menos detalhista, porém mais enfático, visto que estaria convidando a patuléia a exigir.
Antes que se pense que um dirigente do MST não pode dizer uma coisa dessas, é bom informar que a frase foi dita pelo presidente da República, no último dia 11, na praça central da cidade baiana de Valente. (Na transcrição de sua fala, feita pela agência oficial de notícias, ele diz: "Não peçam, exigem". Em nome das boas relações do governo com o idioma, é prudente supor que tenha dito "exijam".)
FFHH é um democrata e seu governo não tem manchas de autoritarismo. O processo contra Stedile é ato da competência do Ministério Público e o seu prosseguimento será um ato soberano do juiz. Tudo bem, mas a falta de processo contra o chefe da invasão do gabinete de Kandir cria o seguinte embaraço: a lei que vale para Stedile, do MST, não vale para Urbano, do PSDB.
Ou, colocando-se a questão de maneira mais perversa: a lei que não pode valer contra Urbano, tem que valer contra Stedile.

Uma grande aula de câmbio, por R$ 7,50
Saiu na edição de julho da revista "Conjuntura Econômica", da Fundação Getúlio Vargas, um magnífico artigo de seu redator-chefe, o economista Lauro Vieira de Faria. Chama-se "Lições Esquecidas" e trata da questão cambial. Foi escrito antes da crise dos tigres asiáticos e estava anunciado há tempo. Vieira de Faria sustenta que o real está desnecessariamente sobrevalorizado em algo como 30%. Essa situação produz riqueza para quem mama nos juros altos (os maiores do mundo, depois da Rússia), pobreza para quem perde o emprego e ansiedade para quem está na escola e será lançado numa economia estagnada.
Não se trata de um catastrofista, bocó, caipira ou similar, mas de uma pessoa capaz de dizer que o Plano Real pode ser considerado "um dos mais bem-sucedidos da história econômica contemporânea mundial". Salvo pela presença de uma equação parecida com o código genético de um vírus, sua linguagem é elegante e compreensível. Argumenta contra as principais defesas da sobrevalorização, lembra que as derrubadas cambiais não são necessariamente inflacionárias e começa seu trabalho com uma citação de Mário Henrique Simonsen:
- Contam-se às centenas as experiências fracassadas de estabilização baseadas na âncora cambial. A causa comum desses fracassos é a sobrevalorização da taxa de câmbio, provocando déficits em conta corrente insustentáveis, com o consequente esgotamento das reservas e o inevitável abandono da âncora cambial. A América Latina é pródiga nesses exemplos.
Vieira de Faria lista os países que pagam as maiores taxas de juro no mundo e de sua tabela resulta que, dos primeiros 15, 5 já tiveram suas moedas abaladas. Desmente que o problema nacional esteja numa poupança insuficiente da sociedade. Em 1994 e 1995, a poupança total -interna e externa- ficou na média de 19,4% do PIB ao ano, enquanto no período que foi de 1950 a 1980, quando o país crescia a taxas de 7,4%, essa poupança esteve em 17,8%. Traduzindo: o Brasil está poupando mais e crescendo menos. Uma taxa de 7% é vista pelo ministro Pedro Malan como delírio. Este ano não se chegará a 4%.
O artigo de Vieira de Faria é um verdadeiro presente para empresários que vivem na busca de análises capazes de orientar suas decisões. Eles pagam fortunas por palestras ou estudos de clarividência a economistas que, em geral, passaram pelo governo como o general Sherman passou por Atlanta durante a Guerra Civil Americana e pelas bonitas cenas do filme "E o Vento Levou". A "Conjuntura Econômica" custa apenas R$ 7,50.

Quando o Dr. Rennó precisa de um, leva três
A última do doutor Joel Rennó, presidente da Petrobrás: há duas semanas, na tradicional reunião de diretoria das quintas-feiras, ele tinha nas mãos um processo técnico, perfeitamente justificado, para a contratação de uma unidade de perfuração destinada à bacia de Campos. Coisa de US$ 80 milhões, num contrato de três anos. Caso exemplar, tinha ido à licitação, não tivera ofertas hábeis e seria negociado diretamente pela empresa. Muito provavelmente seria contratada uma unidade de nome Tor Viking.
Como o doutor Rennó não está para brincadeira, propôs que, em vez de se contratar uma perfuradora, se contratassem mais duas (Zagreb e Falcon 100). É verdade que só dispunha de base técnica perfeita e acabada para orientar um contrato, mas resolveu o assunto sabiamente. Pediu que se consultasse o serviço jurídico.
Tem razão o doutor Rennó. Quando uma pessoa sai de casa para comprar um quilo de alcatra e volta com três, é melhor trazer consigo um parecer de advogado, porque do contrário a patroa se aborrece.

Henrique Cazes
(38 anos, músico, pesquisador da obra dos grandes chorões, lançará em setembro o disco "Relendo Waldir Azevedo")
*
- A que se deve o aumento de interesse pelo chorinho?
- É uma volta ao que já houve. Nos anos 50, os discos de Jacó do Bandolim disputavam as paradas com cantores como Ângela Maria e Cauby Peixoto, mas o choro nunca entrou na televisão e acabou expulso do mercado fonográfico. A música instrumental sumiu. Há pouco mais de dez anos mudou a forma de transmissão dos conhecimentos do choro. Os chorões mais velhos retinham o conhecimento, o Dino chegou a dizer que não ensinava o pulo do gato, como se ele existisse. Hoje a garotada que estuda o choro aprende muito mais e muito rápido, porque há mais informações disponíveis.
- O que é que deu essa capacidade de sobrevivência ao choro?
- A sua rara combinação de simplicidade e requinte. O instrumentista do choro tem que mostrar serviço. Faz parte da cultura do choro que um mesmo trecho de uma música seja sempre tocado de maneira diferente. É uma coisa rara nos gêneros musicais, semelhante ao jazz. Quando uma orquestra de choro toca na rua, todo mundo dança, do mendigo ao casal do edifício em frente. Eu já toquei para 5.000 pessoas em Denver, nos Estados Unidos, e me surpreendi com a animação. Mesmo no Brasil, quando há apoio, o choro faz sucesso.
- Se o choro faz sucesso, por que precisaria de apoio?
- Porque nosso mercado musical está preso num círculo de grandes investimentos e muita divulgação para poucos nomes. Não é uma questão de gênero, é uma questão de nomes. Pode-se achar que o samba vai bem. Há grupos que vão bem, mas o Monarco e a Velha Guarda da Portela tocam em bares. Na Bahia, onde os baianos se adoram, estimularam-se inúmeras formas de expressão musical. O Olodum é uma verdadeira escola, investe na reprodução de sua cultura. No Rio, uma cidade que se vê como cosmopolita, não há uma oficina pública onde se possa aprender a música da cidade. Um dos meus sonhos é ver uma escola livre de música carioca funcionando no Rio. Um lugar onde o garoto do subúrbio possa entrar a aprender a música de sua cidade. Nova Orleans criou o Preservation Hall, onde tocam os velhinhos e os garotos aprendem. No Rio os velhinhos somem.

CURSO MADAME NATACHA DE PIANO E PORTUGUÊS
Madame Natasha tem horror a música e preza a prosa de FFHH. Decidiu lhe conceder uma de suas bolsas de estudo pelo seguinte ataque especulativo ao idioma, cometido em Brasília, durante o encontro da 5ª Cúpula Regional para o Desenvolvimento Político.
- Nós estamos assistindo à interligação dos sistemas produtivos e dispersão, no espaço do processo produtivo, de tal maneira que há uma complementaridade, nem sempre não-assimétrica, frequentemente assimétrica, mas há uma complementaridade, a nível internacional, do processo produtivo.
Madame entendeu. FFHH acha que há algo acontecendo.

Desde que saiu do Ministério da Saúde, o professor Adib Jatene vem mantendo respeitoso silêncio. Está calado, mas não está dormindo.
Se perceber que se arma uma tunga contra o dinheiro do CPMF destinado à saúde, bota a boca no mundo.
Até porque, como ele já demonstrou, tudo o que os economistas do governo disseram a respeito desse imposto resumiu-se a pouco mais que bobagens anti-sociais. Funcionou, não espantou investimentos nem abalou a economia.

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