São Paulo, domingo, 20 de julho de 1997
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Futebol, menina dos olhos azuis, carroceiros...

ALBERTO HELENA JR.
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Imagino um deus, um sátiro, aboletado sobre uma pedra etrusca, vendo o tempo passar pela estrada. Pois é a ele que peço uma bênção ao programador do canal de áudio da Sky de música italiana. Um gênio, uma alma de refinados arpejos, um maestro.
Era aqui que eu queria encerrar minha homenagem a esse anônimo companheiro, que, com sua seleção musical, me pegou pela mão, como um bambino deslumbrado, e levou-me a percorrer os caminhos da infância no velho Brás dos anos 40/50.
Hora do almoço, o cheiro de basilicato se mistura com as frituras que crespam nas frigideiras das mammas. "Ferroquina Bisleri!" -anuncia a voz feminina com fortíssimo sotaque italiano no rádio, uma onda que escapa pela janela aberta para se juntar à outra e mais outra, até formar um mar de sons que inundam as ruas de cimento e macacos, enquanto espio entre encantado e esfaimado os carroceiros da rua Almeida Lima, encarapitados nas boléias. Das mais variadas caixas e marmitas, surgem, como mágica, filões de pães recheados de sardinha, tomate, salada, presunto, queijo, a garrafa de vinho que rebrilha rubis ao sol do meio-dia. Uh, che fame!
Na janela alta, a sombra da menina pálida, duas enormes bolinhas de gude azuis nas olheiras fundas, os cabelos negros brilhantes, um ar espectral por trás da cortina de voil -"Coitada, é doente, ela, é..." cochicha a comadre.
Butti, Schipa, Gigli, Bechi, violinos dilacerantes, bandolins trinando, um lamento longo, interminável, do imigrante que sonha com a volta, do primeiro amor nunca esquecido, do amor traído, da paixão nunca declarada, o terraço esquivo tocado pela luz dissimulada da lua, o sol nascendo no mar, e, no centro, a mamma que tudo perdoa.
Uê, Guaglió! Tá ficando besta? Que que isso tem a ver com o futebol? Tem. Quer ver?
Agora, ouço Roberto Murolo. Ouço e vejo-o sentado num banquinho, debruçado sobre a guitarra, arrancando um som nostálgico que parece vir lá das profundezas do tempo. A voz velada, enrouquecida, engrola um napolitano incompreensível, as palavras comidas pela metade ligadas por um sutil filamento mouro que escorre entre as frases, como se ele cantasse para si mesmo.
Um sucesso. Um escândalo, na manchete de "A Hora": "Tarado!" Pedófilo, diriam os mais comedidos. Viado, nas rodas de esquina, que se abasteciam da onda que engolfava mais duas celebridades: Vermelho, um meia-direita que veio do Bangu para o Corinthians, rechonchudo, cara de lua cheia, e Ranulfo, meia-esquerda de excessiva lentidão, mas fino toque de bola, que o São Paulo havia importado do América do Rio.
Nunca mais ouvi falar dos três. A não ser de Murolo, tema de um artigo do poeta Augusto de Campos, na Folha, recentemente, louvando o trabalho de pesquisa do músico italiano que coletou cantigas e canções desde a Antiguidade num álbum fabuloso. A menina de olhos azuis é ainda um fiapo de sonho. E os carroceiros continuam se empanturrando na memória que não dorme, embalada pelo maestro da Sky.

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