São Paulo, domingo, 20 de julho de 1997
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A sedução da teologia negativa

JEAN-CLAUDE BERNARDET

Continuação da pág. 5-8
Na "Lógica do Pior" (9), Rosset escreve: "O trágico começa (ou começaria) quando não há (ou quando não houvesse) mais nada a dizer nem a pensar. Nesse sentido, o trágico recobre bem adequadamente o conceito de pane: ele designa um discurso detido, um pensamento imobilizado. (...) É trágico o que deixa mudo todo discurso, o que se furta a toda tentativa de interpretação. (...) O trágico é, então, o silêncio. (...) O trágico é isso que não se pensa (não há leis do trágico), mas também isso a partir do que todos os pensamentos são -em um certo nível- revogados. Ele designa assim, num certo sentido, a impossibilidade da filosofia. Acrescentar-se-á: talvez uma de suas mais intensas razões de ser".
A alteração que se deveria fazer para adequar o trágico de Rosset à teologia negativa é extirpar a idéia de pane. Esta, de fato, sugere um defeito do sistema, que pode ser consertado, enquanto na teologia negativa é inerente ao discurso a impossibilidade de falar do incognoscível, como é inerente ao incognoscível ser falado. Neste sentido, a teologia negativa é mais trágica do que a tragicidade que Rosset sugere neste texto. De qualquer forma, ele não está longe de teologia negativa.
Em "L'Objet Singulier" (10), Rosset trabalha uma "ontologia do real" que, distanciada de Platão, apóia-se no singular. Chega assim a uma ontologia "cuja particularidade é não se apoiar nem no pensamento de seu ser nem no de sua unidade, mas tão-somente sobre a consideração de sua singularidade. Apoio que pode, sem dúvida, aparecer para sempre duvidoso, já que a consideração sobre a qual se fundamenta tal ontologia é obscura no seu princípio: consideração de um real que, enquanto singular, não poderia nunca ser visto nem descrito. Nada há a responder a essa objeção, deve-se, ao contrário, confirmar constantemente a sua legitimidade. A ontologia do real é uma antologia negativa, comparável aos sistemas que a história da filosofia reconheceu como teologias negativas, como os de Dionísio, o Areopagita, de Mestre Eckhart e de Nicolau de Cusa, dos quais ela não difere senão pela circunstância de que aplica ao real os atributos que os teólogos negativos costumam atribuir a Deus. Afora esta única porém importante diferença, a ontologia do real vai ao encontro dos princípios da teologia negativa, convencida de que não se pode ver senão pela cegueira, conhecer senão pelo não-conhecimento, compreender senão pela desrazão, para retomar os termos de uma célebre fórmula de Eckhart" (grifos no original). Circunstância de fato importante, porque este pensamento, sem deus, ficará também sem mundo.
8. Jacques Derrida tampouco ficou indiferente à teologia negativa, que, em "Salvo o Nome" (11), ele comenta a partir de Angelus Silesius. Ele a percebe como um corpo de textos, destaca ser ela uma linguagem que põe os seus limites à prova e se volta sobre si mesma, num duplo movimento de "esquivamento e transbordamento".
Insiste sobre o movimento da teologia negativa em "direção do outro absoluto" (grifo meu) e pergunta-se se "a extrema tensão de um desejo" na busca do outro absoluto não leva a teologia negativa a "renunciar a seu próprio impulso, ao seu próprio movimento de apropriação". Podemos nos perguntar se estas afirmações de Derrida não correspondem, com um vocabulário moderno, a colocações feitas por Mestre Eckhart.
Uma afirmação de Derrida, cheia de volutas e contradições, tenta captar o aspecto da teologia negativa de que trata este texto: "Como se fosse preciso ao mesmo tempo salvar o nome e tudo salvar, exceto o nome, salvo o nome (nas duas acepções da expressão; grifo no original), como se fosse preciso perder o nome para salvar aquilo que porta o nome, ou aquilo na direção do qual se dirige por meio do nome".
Dos filósofos franceses atuais, Derrida é provavelmente aquele cuja obra tem mais condições de dialogar com a teologia negativa. Mas não penso que ela seja um problema para seu trabalho. Ele pode pensar a respeito, ela não coloca seu pensamento em xeque.
9. Para Wittgenstein, a teologia negativa é um problema no centro de seu sistema. Tal afirmação pode parecer gratuita, já que Ludwig Wittgenstein nunca se referiu à teologia negativa, pelo menos explicitamente (até onde vão os meus conhecimentos). Talvez o fato de ele não a ter comentado lhe dê um lugar inesperado na sua obra.
9.1. Gostaria inicialmente de voltar às minhas dificuldades em entender Nicolau de Cusa. O sistema apresentado no "Tractatus Logico-Philosophicus" (12) afirma que "os elementos da figuração estando uns em relação aos outros de um modo determinado, isto representa as coisas estando umas em relação às outras (...)" (2.15). Ou seja, é como se tivéssemos um quadro (este é o termo usado na tradução francesa para significar o "figuração" da tradução brasileira) (13) cujas partes mantêm entre si relações análogas às mantidas pelas coisas do mundo. Assim, a figuração pode se estender à realidade, isto é, atingi-la (2.1511). A analogia não se dá no nível dos elementos, mas no nível da forma da representação (2.17). E, afirmação chave, "para reconhecer se uma figuração é verdadeira ou falsa devemos compará-la com a realidade" (2.223), já que "não podemos reconhecer apenas pela figuração se ela é verdadeira ou falsa" (2.224).
Ora, para que esse sistema, em que a figuração pode atingir a realidade e em que é possível afirmar a veracidade ou falsidade da figuração, funcione, é necessário fazer também a seguinte afirmação: "Um estado de coisas é pensável significa: podemos construir-nos uma figuração dele" (3.001), ou seja, é necessário que o mundo seja pensável para que se possa representá-lo. O sistema geométrico construído por Nicolau de Cusa me parece semelhante ao de Wittgenstein, menos em dois pontos: o estado de coisas é pensável, e podemos comparar a figuração com a realidade. Essas duas operações não são possíveis na teologia de De Cusa, o que leva seu sistema ao paralelismo. Wittgenstein pode usar o mundo como referencial, Nicolau de Cusa não pode.
Aliás, pergunto-me se, no pensamento de Wittgenstein, a relação entre a proposição e o mundo, a qual permite aferir a veracidade da primeira, não teria nunca sido objeto de nenhuma dúvida. Ray Monk (14) relata que Wittgenstein teria lido "uma reportagem sobre um processo em Paris envolvendo um acidente de carro. No tribunal, uma das partes havia representado um modelo do acidente e ocorreu-lhe, então, que o modelo poderia muito bem representar, ou figurar, o acidente, dada a correspondência entre as suas partes (casas, carros e pessoas em miniatura) e as coisas reais (casas, carros e pessoas). Ocorreu-lhe ainda que, nessa analogia, poder-se-ia dizer que uma proposição serve de modelo, ou figuração (ou imagem), de um estado de coisas, em virtude de uma correspondência similar entre as suas partes e o mundo. O modo como as partes de uma proposição se combinam -a estrutura da proposição- indica uma combinação possível dos elementos da realidade, de um estado de coisas possível". Possível, desde que se confronte a simulação com o acidente real e daí se conclua quanto à similitude. No entanto, do exposto por Monk, nada há na simulação e na sua estrutura que permita concluir que é uma simulação verdadeira do acidente real. Penso que é com este problema que Nicolau de Cusa e seu sistema geométrico se defrontam.
9.2. A proposição de Wittgenstein que é fácil de relacionar com a teologia negativa é a última do "Tractatus Logico-Philosophicus": "O que não se pode falar, deve-se calar" (7), sendo que o que não se pode falar, tampouco se pode pensar: "Não podemos pensar o que não podemos pensar, por isso também não podemos dizer o que não podemos pensar" (5.61). A última proposição relaciona-se, no pensamento de Wittgenstein, com a ética, mas o seu cheiro de teologia negativa é demais para ser ignorado, tanto mais que as aberturas místicas do "Tractatus" são inegáveis.
Nessa obra híbrida que, no dizer de Ray Monk, combina "teoria lógica e misticismo religioso", há um além do mundo e este além parece ser, por definição, indizível, é o que aparece em proposições como: "Como é o mundo é perfeitamente indiferente para o que está além. Deus não se manifesta no mundo" (6.432), ou: "Existe com certeza o indizível. Isto se mostra, é o que é místico" (6.522). O caráter indizível do que está além do mundo não exclui que, de alguma forma, ele possa ser ..........., do modo seguinte, (conforme o comentário de um poema feito por Wittgenstein e citado por Ray Monk): "É assim que as coisas são: se não tentamos exprimir o que é inexprimível, então nada se perde. Mas o inexprimível estará -inexprimivelmente- contido naquilo que foi expresso".
Tendo a acreditar, sempre seguindo Ray Monk, que o indizível não surge por si só inexprimivelmente no expresso, mas sua possibilidade de surgimento resultará de uma luta da linguagem consigo mesma, conforme a expressão de Wittgenstein numa palestra: "Minha inclinação, e creio que a de todos os homens que tentaram escrever ou falar sobre ética ou religião, era lançar-se contra os limites da linguagem. Esse lançar-se contra as grades da nossa jaula é algo perfeita e absolutamente sem esperança (...) ética, é uma tentativa de dizer algo que não pode ser dito, de se arrojar contra os limites da linguagem". Talvez tais afirmações pronunciadas a respeito da ética possam ser aplicadas à religião: "Posso imaginar uma religião em que não haja proposições doutrinais e em que, portanto, não haja fala. Obviamente, a essência da religião não pode ter nada a ver com o fato de ter fala". Sem falar da teologia negativa, Wittgenstein fala da teologia negativa.
A teologia negativa é o calcanhar-de-aquiles de um século que escolheu a linguística como musa, e o "Tractatus Logico-Philosophicus" está no centro do torvelinho.
10. Fima "estava sentado num café à beira-mar, observando dois pescadores jogando gamão. Na verdade, não estava de fato observando os pescadores, e sim um pastor alemão sentado, atento, numa cadeira entre ambos. As orelhas do cão apontavam seriamente para a frente, como se estivesse escutando atento à próxima jogada, e ficava seguindo os dedos dos jogadores, e o rolar dos dados e o movimento das pedras; seus olhos deram a Fima a impressão de estarem repletos de concentração e fascínio. Fima jamais vira, antes ou depois, um esforço tão profundo para entender o ininteligível, como se, na sua ansiedade de decifrar o jogo, o cão tivesse conseguido um certo grau de desincorporação. Com certeza, é assim que devemos olhar para o que está além de nós. Apreender o máximo que pudermos, ou ao menos apreender a nossa incapacidade de apreender" -Amóz Oz, "Fima" (15).

Notas:
1. O conjunto de textos conhecidos como "corpus dionysiacum" aparece em 533. Até hoje a sua autoria é misteriosa.
2. "Oeuvres Complètes du Pseudo-Denys l'Aréopagyte". Tradução, comentários e notas de Maurice de Gandillac. Paris, Aubier, 1995 (1943) ("Bibliothèque Philosophique"). Estas, como todas as traduções que faço a partir de traduções francesas, são literais.
3. Nicolas de Cusa. "De la Docte Ignorance". Paris, Felix Alcan, 1930. Tradução de L. Moulinier, introdução de Abel Rey.
4. Angelus Silesius. "Le Pélerin Chérubinique". Paris, Albin Michel, 1994 ("Spiritualités Vivantes"). Tradução de Camille Jordens.
5. Johannes Tauler. "Cantate de la Nudité". Em "Hermès, Recherche sur l'Expérience Spirituelle". Paris, Deux Océans, 1981. Número especial: "Le Vide, une Expérience Spirituelle en Occident et en Orient". Deixo o texto em francês devido à sua extrema dificuldade de tradução. O termo traduzido por "rien" é possivelmente, em alemão, "das Nichts", que se opõe a "das Nichtige", que em francês se traduz por "néant". Se "das Nichtige" pode ser compreendido como uma anulação, um aniquilamento, "das Nichts" é uma espécie de tábua rasa que "abre o espaço do ser". Parece-me que a língua portuguesa não consegue fazer essa diferenciação.
6. Leonardo Boff, "Mestre Eckhart - A Mística da Disponibilidade e da Libertação". Em: "Mestre Eckhart - O Livro da Divina Consolação e Outros Textos Seletos". Petrópolis, Vozes, 1991.
7. De Gandillac usa as duas expressões: "supermundano" e "supramundano".
8. Nicolau de Cusa, "A Visão de Deus". Lisboa, Calouste Gubelkian, 1988.
9. Clément Rosset, "Lógica do Pior". RJ, Espaço e Tempo, 1989.
10. Clément Rosset, "L'Objet Singulier". Paris, Minuit, 1979.
11. Jacques Derrida, "Salvo o Nome". Campinas, Papirus, 1995.
12. Ludwig Wittgenstein, "Tractatus Logico-Philosophicus". SP, Companhia Editora Nacional/Edusp, 1968 (tradução de J.A. Giannotti).
13. Ludwig Wittgenstein, "Tractatus Logico-Philosophicus". Paris, Gallimard, 1961 (tradução de Pierre Klossowski).
14. Ray Monk, "Wittgenstein, o Dever do Gênio", SP, Companhia das Letras, 1995.
15. Amóz Oz, "Fima". SP, Companhia das Letras, 1996.

Jean-Claude Bernadet é escritor, crítico de cinema e professor da Escola de Comunicação e Artes da USP. É autor, entre outros, de "Aquele Rapaz" (Brasiliense).

(*) O senhor na carruagem não era bonito, mas também não era particularmente feio; ele não era nem muito gordo nem muito magro; não se podia dizer que fosse velho, mas também não era jovem.

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