São Paulo, domingo, 20 de julho de 1997
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Um filme para apátridas

CARLOS REICHENBACH
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando o British Film Institute recuperou 360 filmes importantes para a história do cinema, várias personalidades, entre cineastas, críticos e romancistas, foram convidados a escrever sobre os filmes do acervo.
O crivo na escolha dos filmes a serem salvos das limitações físicas do celulóide pode ser bastante discutível, mas é inegável que os chamados "filmes de produtor" tiveram, em algum momento, sua importância histórica.
Confesso que nem "O Mágico de Oz" e muito menos "E o Vento Levou" são filmes que me despertam o desejo da revisão. Talvez, o grande mérito dos livros lançados na esteira da empreitada da BFI seja exatamente o de estimular o interesse do aficionado a partir de um olhar diferenciado e insuspeito.
É o caso do texto de Salman Rushdie, que, de pronto, revela ter escrito em Bombaim, aos dez anos de idade, sua primeira história à luz de "O Mágico de Oz" (o filme, não o livro). Há uma tamanha euforia na "viagem" pessoal do autor na fantasia imaginada por L. Franck Baum, notório escritor de histórias infantis, que é impossível resistir à tentação de alugar o vídeo sob o efeito da leitura.
Mas vídeo não é uma maneira nobre de se rever um grande filme. O próprio autor confessa o seu sentimento de culpa ao imaginar o texto, sentado à frente de uma pequena tela de TV, ralentando as cenas preferidas, indo e voltando imagens, fixando fotogramas, com um caderno de anotações no colo. Confessa também que detectou ali um prazer inédito na forma de ver filmes.
Rushdie esmiúça todos os meandros do périplo de Dorothy, o Espantalho, o Homem de Lata e o Leão Covarde à terra de Oz. É inevitável, conhecendo-se o calvário do próprio Salman, não deixar de perceber os motivos de tanta sintonia e identificação. Mas o autor passa uma admiração tão espontânea pelo filme que exclui qualquer condescendência. Sobressai o exercício lúdico do mergulho pessoal no imaginário alheio. Contudo, o autor se muniu de informações preciosas sobre a vida do autor da história e da produção dos dois filmes inspirados nela.
Entre as diversas revelações que Salman Rushdie faz sobre a gênese e a realização da última versão fílmica, sobressai o tom confessional sobre o produto final (o filme) na imaginação do garoto hindu que teve a "felicidade" de estudar em um colégio inglês. Ao mesmo tempo em que interpreta pessoalmente cada um dos personagens "simbólicos" e os cenários fantasiosos, o autor desmistifica a visão clássica e quase oficial do filme.
Para quem achava o filme digno de lembrança unicamente pela inclusão da sequência em que Judy Garland canta "Over the Rainbow", chega a ser espantoso descobrir que ela quase foi eliminada na montagem final.
É verdade, também, que o filme "O Mágico de Oz" voltou à ordem do dia, recentemente, não por causa do livro de Rushdie, mas porque se descobriu que o álbum "The Dark Side of the Moon", do grupo Pink Floyd, hit absoluto de vendagem mundial, foi imaginado e composto como uma trilha sonora alternativa do filme. Discos foram reprensados, vídeos recopiados para atender uma demanda espetacular do mercado americano. Rushdie deve estar rindo à toa, se é que ainda consegue rir de alguma coisa. Para ele, "O Mágico de Oz" é um filme para apátridas e exilados. A idéia de que se trata de um filme para adultos, e não uma mera fantasia infantil, é defendida de maneira tão veemente que ele chega a subverter o teor ameno de seu texto com confidências atrevidas.
Rushdie fala do grande amor de sua vida, a prima Gail, e do enorme prazer que sentia com seus gemidos e frases ditas em alto e bom tom, no instante da penetração: "Em casa, garoto! Em casa, neném... você entrou em casa!". Revela também as pequenas vilanias que cometeu ao se descobrir traído. Da obsessão de um lar verdadeiro, só possível quando concebido por nós mesmos, Salman avança na descoberta de suas próprias frustrações, das pequenas taras e das projeções óbvias (onde o mágico é o papai Rushdie).
É esta "navegação" quase irresponsável pelo assunto que torna o autor fascinante. O filme é tomado como fio da meada, eixo da reflexão; mas o texto nunca fica subserviente a ele.

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