São Paulo, domingo, 20 de julho de 1997
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A estrutura imperfeita do tempo

LUIS BUENO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O título do novo romance de Rui Mourão, "Servidão em Família", dá uma falsa pista ao leitor: parece o de um romance de tese. De fato, o livro faz uma discussão sobre a degradação da instituição familiar, centrando sua narrativa na família de um grande empreiteiro de Belo Horizonte, Saulo Ramos. O ponto de partida do enredo é um forte impacto familiar, a tentativa de suicídios de Guilhermina, mulher do empresário. No entanto, em vez da previsibilidade de um romance de tese, o que se lê é um texto que chama atenção pela técnica com que é construído.
No que diz respeito ao narrador, por exemplo, Rui Mourão trabalha de forma comparável àquela que, no seu livro "Estruturas" (1969), um estudo já clássico sobre Graciliano Ramos, ele identificou em "Vidas Secas": "O romancista se instala com o ponto de vista narrativo ora do lado de fora de suas figuras, ora na cabeça de uma ou de outra". Mas, em seu romance, o sentido que ele dá a essa variação é diferente e tem um ritmo também diferente. A voz do narrador oscila muito rapidamente, várias vezes num mesmo parágrafo, falando de fora e de dentro das personagens. Com esse contraste sutil, mas constante, a banalidade da visão de mundo dessas figuras acaba saltando à vista do leitor, e a visão crítica do narrador se coloca sem a necessidade de julgar explicitamente suas criaturas. Como consequência dessa constituição do narrador, a linguagem em que o livro é escrito também é retirada do universo da artificialidade social. Quem leu um romance como "Curral dos Crucificados" (1971), de estrutura fragmentária e linguagem bastante inventiva, poderá estranhar o tom normativo, quase de relatório, deste "Servidão em Família". Mas não poderá deixar de perceber que a escolha desse registro ajuda a instaurar aquela superposição -quase confusão- dos planos do narrador e das personagens.
Uma outra decorrência dessa superposição de planos é o tipo peculiar de introspecção psicológica que o romance apresenta. As camadas interiores das personagens são formadas por uma espécie de introjeção dos valores sociais. A explicação de seus anseios e suas frustrações -não importando se as explicações vêm delas mesmas ou do narrador- deriva sempre dos papéis sociais que elas representam ou querem representar.
Embora possa parecer paradoxal, trata-se de um introspecção de superfície, no sentido de uma identificação entre o íntimo e o comportamento externo. As cenas mais marcantes do livro, aliás, são aquelas em que isso se explicita. Exemplar é o momento em que Saulo passa pelo seguinte momento de frustração: "Por mais calejado que fosse, não conseguia evitar o pessimismo. Que se podia esperar de um mundo em que os valores se achavam daquela maneira tão alterados?".
O peculiar não está nesse pensamento, em si banal, mas no que o suscita, que é o fato de seu genro não se importar em perder um cargo numa empresa estatal, conseguido por intermédio de pistolão: é a perda dos "valores" da manutenção de um certo espaço de poder que ele tanto lamenta. Na mesma direção vai a tentativa de suicídio de Guilhermina. O que a tortura é ver uma transformação familiar concretizada no fato de suas filhas não poderem mais representar um papel social que, para ela, é o único que pode existir.
Dessa forma, ganha significação a maneira pela qual a narrativa se desenvolve temporalmente. O passado aqui não surge como evocação, mas como elemento integrado ao presente, de forma que somos levados, quase sem perceber, a uma estrutura circular. Mas não se trata de um círculo perfeito. De novo pelo contraste, o narrador mostra que a história da tentativa de suicídio pode ter as pontas atadas, mas a história de suas causas, não. O passado e o presente se relacionam, mas não se encontram em harmonia. Assim, o tempo é mais um elemento a indicar que "Servidão em Família" é fruto da grande consciência artística de seu autor.

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