São Paulo, domingo, 20 de julho de 1997
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Uma figura polêmica das telas

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Às vezes este livro parece bom, às vezes não. Tudo depende do foco que o leitor quiser adotar. Se decidirmos ler o livro em "close up", ganharemos muito. Trata-se de uma série de ensaios sobre filmes específicos: "Blow Up", de Antonioni, "A Montanha dos Sete Abutres", de Billy Wilder, "A Gardênia Azul", de Fritz Lang, "Jejum de Amor", de Howard Hawks, entre outros.
São todos filmes sobre jornalistas. Mas é aí que abandonaremos o "close up", a apreciação dos ensaios sobre cada filme, e iremos procurar, junto com a autora, uma generalização mais ambiciosa, que diga respeito às relações entre jornalismo e cinema em geral.
O livro começa propondo uma discussão a respeito da figura do jornalista no mundo contemporâneo. Vemos os jornais adotando técnicas cada vez mais precisas e impessoais de comunicação, cada vez mais submetidos à lógica industrial. Com isso, a figura romântica do jornalista independente cede espaço ao jornalista-burocrata. A este último se contrapõe o "jornalista-estrela"; mas o contraponto é ilusório. O estrelato e a burocratização são faces da mesma moeda.
"Foi a emergência dessa questão da imagem do jornalista no mundo contemporâneo", diz Stella Senra, "associada ao gosto pelo cinema que levou ao exame das imagens cinematográficas do profissional da imprensa e (...) ao modo como estas têm sido elaboradas pelo cinema de inspiração americano".
Os ensaios do livro correspondem a essa ordem de indagações. Aborda-se, por exemplo, a vocação do jornalista, tal como apresentada em "Jejum de Amor", de Howard Hawks. "O Tempo do Jornalista" -isto é, a pressa, a imediatez dos fatos, a fugacidade da notícia- é o título do ensaio sobre um filme de René Clair; a questão da "escrita jornalística" orienta o texto sobre "A Gardênia Azul", de Fritz Lang. Técnica e olhar são motes para tratar de "King Kong".
A divisão entre diferentes "aspectos" da atividade jornalística e diferentes filmes promove uma certa ilusão de ótica. Lido individualmente, cada ensaio é cheio de idéias interessantes e trata com rara profundidade os recursos (ou serão acasos?) narrativos de cada filme. Em "A Gardênia Azul" temos uma telefonista acusada de assassinato. Ora, a profissão de telefonista corresponde "a uma passividade no interior dos processos de comunicação", que contrasta com o poder do jornalista famoso. "King Kong" narra a fabricação de um filme; a luta contra o gorila impõe, segundo a autora, a "passagem dos instrumentos de representação (câmeras de filmar, por exemplo) para os equipamentos de guerra" (aviões, metralhadoras que se usam para matar a fera). Do mesmo modo, a notícia é ao mesmo tempo um apelo ao mundo emocional, selvagem, e a neutralização deste pela técnica jornalística.
Diante de análises tão criativas, é difícil evitar uma pergunta clássica: será que os autores desses filmes realmente quiseram dizer tudo o que a autora desvenda em suas obras?
A questão tem importância. Uma coisa é afirmar que, inconscientemente, tal diretor terminou abordando aspectos cruciais da realidade. Outra é tomar a obra do diretor como testemunho, ou explicação, de uma realidade que estamos tentando analisar.
No primeiro caso, a interpretação poderá ser mais livre, mas irá valorizar a obra em si, encontrando nesta seu ponto de chegada. No segundo, a obra seria o passaporte para o entendimento de algo que lhe é externo.
O livro de Stella Senra parece oscilar entre os dois pólos. Com alguns problemas adicionais. Valeria a pena indagar, por exemplo, até que ponto o cineasta é um "autor" alheio às contingências de seu processo de produção, às restrições do meio que utiliza. Não haveria nessa pseudo-autonomia um dado comum entre o papel do jornalista num grande órgão de imprensa e o do diretor num estúdio de cinema?
A questão tenderia a ferir um pressuposto deste livro, que é o do caráter "autoral" do cinema clássico hollywoodiano. Mas, se algo da "verdade" a respeito do jornalismo pode ser deduzido da análise de tantos filmes, seria necessário considerar todos eles como uma espécie de obra coletiva, como vasto esforço de designação de um objeto externo. Isso tampouco acontece no livro; o leitor está sempre esperando uma conclusão que tomasse os filmes como documentos de apoio para uma tese mais ampla, e retorna sempre ao brilho das análises individuais desta ou daquela obra.
Por vezes, a autora parece falar do jornalismo em geral; em outros momentos, de filmes específicos. Digamos que "explora a interface" entre uma coisa e outra. Mas é esse caráter exploratório que dá ao livro um tom inconclusivo. A interpretação de uma obra surge como explicação da realidade, e a explicação da realidade se esconde na interpretação de cada obra; nesse jogo de esconde-esconde, há surpresas fascinantes, mas decepções também.

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