São Paulo, domingo, 20 de julho de 1997
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Muito além da natureza

ROBERTO C. DE MAGALHÃES
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Monet é somente um olho. Mas que olho!". A frase maliciosa de Cézanne resume os termos com que a crítica de arte, favorável ou não, influenciou (e limitou) a compreensão do pintor das famosas séries de quadros com a catedral de Rouen. Monet, ainda hoje, é considerado o pintor do instante, das variações atmosféricas e dos efeitos da luz na natureza.
Um dos primeiros observadores a reconhecer a sua importância, Octave Mirbeau (1850-1917), escrevia, em 1884: "Monet extraiu da sua paleta todo o fogo e toda decomposição da luz, cada jogo de sombra, cada mágica da lua e cada neblina evanescente" (1); e, em 1889, acrescentava: "A arte desaparece por assim dizer, apaga-se... Agora, nós nos encontramos somente diante da natureza viva, conquistada e domada por esse pintor milagroso" (2).
O próprio Emile Zola, por duas décadas defensor aguerrido dos pintores assim chamados impressionistas, fala de Monet e Pissarro (1831-1903) como "os primeiros a estudar de modo encantador os reflexos e a composição da luz" (3). E Degas teria dito, diante dos quadros representando choupos-brancos, expostos em 1898 na galeria de Durand-Ruel, em Paris: "Vou embora, me parece que há muita corrente de ar por aqui, mais um pouco e serei obrigado a levantar a lapela do paletó" (4).
Maldades à parte, tais afirmações lançaram os alicerces da crítica exegética tradicional da obra de Monet. Se, por um lado, são compreensíveis no momento histórico em que foram feitas -período no qual a natureza, com a sua luminosidade, com as suas cores vivas, irrompe num panorama artístico dominado pela pintura de ateliê ancorada a esquemas acadêmicos, ao uso de vernizes pesados que mortificavam, freavam o efeito das cores-, por outro, elas acabaram fazendo de Monet exclusivamente um pintor que transcreve os efeitos visuais da natureza sobre a tela, ainda que pintor de uma capacidade ótica inigualável.
E, como se não bastasse, uma entrevista e uma passagem da correspondência do próprio Monet aparentemente corroboram a sua definição tradicional como pintor de fenômenos atmosféricos. À revista "La Vie Moderne" de abril de 1880, ele declara: "Meu ateliê! Eu nunca tive um ateliê, e não consigo entender como alguém pode se trancar num cômodo. Para desenhar, sim; para pintar, não". Mostrando, então, o Sena, as colinas e Vétheil para o seu interlocutor, conclui: "Eis o meu ateliê!" (5). E, 20 anos depois, na aurora do século 20, arremata assim uma carta enviada de Londres à mulher, Alice Hoschedé: "Agora, querida, tenho que deixá-la, pois o efeito não esperará" (6). Evidentemente, trata-se do efeito atmosférico.
A publicação recente, na França, do monumental "Catalogue Raisonné" (Benedikt Taschen Verlag, Colônia, 1996) da obra de Claude Oscar Monet e a exposição do Museu de Arte de São Paulo (Masp) nos dão o pretexto para examinar a questão. O catálogo ao qual o autor, Daniel Wildenstein, dedicou a sua inteira existência, apareceu pela primeira vez entre 1974 e 1991.
A nova edição, de qualidade excelente e atualizada -por volta de cem "títulos" foram adicionados ao repertório, totalizando mais de 2.000 obras-, apresenta quatro volumes, ao preço acessível de cerca de US$ 180. Três volumes compõem o catálogo propriamente dito, e um volume, o primeiro, intitulado "Monet or the Triumph of Impressionism" (Monet ou o Triunfo do Impressionismo), contém uma reconstrução, rica em detalhes, da biografia e da atividade artística de Monet.
Ainda que não caiba a um catálogo "raisonné" a tarefa de definir criticamente a posição de um artista na história, e sim de reunir todo e qualquer material sobre o artista para permitir aos estudiosos um panorama o mais completo possível da sua obra, nos perguntamos, mesmo assim: que visão Daniel Wildenstein nos dá de Monet? Não é uma visão muito diferente daquela já enunciada no século passado e que, em muitos setores da crítica, se prolonga até nós: isto é, de um pintor empenhado em capturar o efeito momentâneo da luz sobre a natureza. Esta reiteração de um lugar-comum é, se assim podemos dizer, o único "defeito" desse trabalho portentoso.
O "plein air", o ar livre, é, sim, fundamental na obra de Monet. Mas sua pintura está longe de se exaurir na mera representação fenomenológica. Ao contrário, Monet concebe a natureza como uma força animada, em fermentação contínua; não a vê friamente, à distância, como um paisagista normal, mas nela é imerso e por ela é exaltado. A sua derradeira série de "nenúfares" nos dá uma idéia desse envolvimento emotivo: o ponto de vista dos quadros não é mais aquele de quem observa, por fora, uma paisagem, mas de alguém que está dentro, que vive o fenômeno natural. E a fluidez, o frenesi, a gestualidade das pinceladas, que beiram a abstração, não deixam dúvida alguma sobre a subjetividade da sua relação com o real.
Não é por acaso que Kandinsky (1866-1944), referindo-se a um quadro de Monet, diz que "a pintura recebeu uma força e um brilho fabulosos" (7), pois a abertura para o natural trouxe para as artes a luz e a riqueza cromática que lhes faltavam, ao mesmo tempo que esses novos elementos tornavam-se o verdadeiro tema do quadro, a despeito da representação. E também não é uma coincidência se Clement Greenberg (1909-1994) aponta Monet, o Monet dos últimos 20 anos, como um precursor da "action painting", de Jackson Pollock (1912-1956), pois em muitos dos seus derradeiros quadros a ênfase é colocada sobretudo no movimento das pinceladas: a gestualidade predomina sobre a matéria figurativa.
Pode-se dizer que essa dualidade, na obra de Monet, existe desde os anos 60 e 70 do século passado. Mas se, no início da sua atividade, ainda é muito evidente o dado natural, por outro lado, a busca da vibração luminosa e das cores e a gestualidade das pinceladas ganham terreno gradativamente até resvalar, nos últimos anos, no abstracionismo. Acontece, na pintura de Monet, uma espécie de "curto-circuito", para usar uma expressão de um grande exegeta do pintor francês, Francesco Arcangeli. A luz envolve tudo e "reforma a visão aparentemente realista desde a raiz; faz dela uma coisa ao mesmo tempo extremamente verdadeira e extremamente lírica... a visão do real é extremamente verdadeira e, também, extremamente sonhada" (8).
Em suma, o "olho excelente" que Monet foi para as últimas décadas do século passado, transforma-se, hoje, numa simbiose singular entre o natural e o humano. Pode-se dizer o mesmo de Cézanne. Mas, enquanto este último realiza a sua simbiose com a natureza num sentido "construtivo", criando as premissas para o nascimento do cubismo, Monet o faz no sentido "gestual", lançando as bases para a pintura "de gesto" e para a "action painting".

Notas:
1. Mirbeau, Octave, "Claude Monet", in: "La France", 21/11/1884.
2. Mirbeau, Octave, "Claude Monet", in: "Monet-Rodin", catálogo da exposição realizada na Galeria G. Petit, Paris, 1889.
3. Zola, Emile, "Peinture", in :"Le Figaro", 2/5/1896.
4. Edgar Degas citado por D. Wildenstein in Claude Monet, catálogo da exposição parisiense de 1952.
5. Taboureux, Émile, "Claude Monet", in: "La Vie Moderne", 12/6/1880, págs. 380-382.
6. Monet citado por D. Wildenstein in: "Claude Monet or the Triumph of Impressionism", pág. 345.
7. Kandinsky, Wassily, "Regards sur le Passé et Autres Textes - 1912-1922".
8. Arcangeli, Francesco, "Monet", Nuova Alfa, págs. 38 e 39.

Roberto Carvalho de Magalhães é professor de história de arte e museologia na Università Internazionale dell'Arte (Florença) e escreve na revista "Critica d'Arte" e nos jornais "La Nazione" e "Il Resto del Carlino".

Monet no Masp:
A exposição do pintor francês acontece no museu, de terça a domingo (av. Paulista, 1.578, SP), até o dia 27.

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