São Paulo, domingo, 20 de julho de 1997
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As andanças de uma alma brasileira

JOSÉ PAULO PAES

O dogma da ressurreição da carne no dia do Juízo Final devia ter causado sérias perplexidades aos ouvintes do pregador Antônio Vieira. Tanto assim que, para dissipá-las, teve ele de recorrer ao melhor da sua dialética barroca. Isso no "Sermão da Primeira Dominga do Advento" (1650), que é um sermão de visada duplamente espacial, pois discorre ao mesmo tempo sobre o espaço físico ocupado pelos corpos e sobre o espaço moral ocupado pelas almas. A crer no próprio Vieira, seus fiéis estavam perplexos tão-só com o primeiro. Parecia-lhes impossível caberem no vale de Josafá, naquele dia terrível, todos "os homens se continuaram desde o princípio até agora, e os que se irão multiplicando sucessivamente até ao fim do mundo".
A habilidosa resposta de Vieira é a de que os bons ocupariam muito pouco lugar porque, tanto quanto os dos bem-aventurados, seus corpos estavam dotados de sutileza tal que caberiam todos até no minguado espaço do púlpito de onde ele pregava. Quanto aos maus, que são tantos, "e hoje tão grandes e tão inchados", no dia do Juízo haverão de estar "muito pequeninos". Articula-se aqui uma sutil convergência barroca na qual a igualdade dos termos convergentes aponta paradoxalmente para uma divergência de raiz entre eles. Assim, a grandeza moral da bondade, que é essência, traduz-se em mínimo espaço físico, porque o físico é só aparência. Por sua vez, o inchaço físico da soberba e da maldade é moralmente tão mesquinho que se vai minimizar como cumpre no dia do Juízo.
Embora impliquem a mesma noção de um dia a alma ter de expiar as culpas do corpo, as doutrinas hindus e gregas da metempsicose ou transmigração anímica não precisam recorrer a tal ginástica dialética para explicar-se. À prodigalidade cristã de imaginar seja criada uma nova alma para cada novo corpo que nasça, prefere o reincarnacionismo postular a solução muito mais econômica de um número limitado de almas habitando um crescente número de corpos sucessivos. Di-lo o epigrama de Empédocles recolhido na "Antologia Grega ou Palatina": "Pois em verdade eu já fui rapaz, já fui donzela,/ fui arbusto, pássaro, ardente peixe do mar".
Bem menos epigramaticamente, Sócrates postula, no "Fédon", que a alma do filósofo, por não se deixar escravizar às solicitações do corpo, mantém-se pura e, após a morte do seu envoltório terreno, dirige-se diretamente "para o que é invisível, para o que é divino, imortal e sábio (...) e passa na companhia dos deuses o resto do seu tempo". Só as almas dos maus é que ficam vagueando por aqui até achar "algo corporiforme" que se lhes assemelhe: os glutões, os impudicos e os ébrios reincarnam-se "em corpos de asno ou de animais semelhantes", os culpados de injustiça, rapina ou tirania "animarão corpos de lobos, falcões ou milhafres".
Muito se discutiu acerca das ligações da antiga filosofia grega com a antiga filosofia indiana. Quaisquer que tenham sido, salta aos olhos a similitude dessas idéias socrático-platônicas com a noção de "karma" do sistema "vaisesika", ou seja, a lei de retribuição que, em função dos atos e pensamentos bons ou maus do indivíduo, vai determinar a natureza e circunstâncias de sua ulterior encarnação no "samsara". Assim se intitula, em sânscrito, a roda das sucessivas mortes e renascimentos da alma individual, roda à qual praticamente todas as escolas filosóficas da Índia buscaram algum meio de escape a fim de que a alma pudesse alcançar o "nirvana" -a completa extinção da individualidade, mas sem perda da consciência, para que ela se soubesse desfrutando essa beatitude final.
Em nossos dias, a voga ocultista, que vem enchendo de dinheiro o bolso de tantos espertalhões e de ilusões o espírito de tantos ingênuos, degradou em caricatura as doutrinas metempsicóticas. Aí está, para ilustrar o grau de degradação, a enxurrada de livros e filmes em torno de supostas técnicas de regressão psíquica a vidas passadas. Foi certamente para estremar-se desse ridículo que Virginia Woolf cuidou de impregnar de humor o texto do seu "Orlando", reconhecidamente o mais bem logrado aproveitamento literário do tema da metempsicose. Literário no sentido de sujeitar-se estritamente à ordem do imaginário e do fictício, sem compromisso algum com a ordem do real ou do verídico, mesmo que hipotético. Por outras palavras: o humor que pervaga o "Orlando" faz crer que sua autora não perfilhava a sério as doutrinas reincarnacionistas.
Tampouco as parece perfilhar o autor deste "Os Rios Inumeráveis", em cujo posfácio confessa a sua dívida para com o modelo woolfiano. Mas enquanto o humor de "Orlando" é tipicamente britânico na sua discrição, o de "Os Rios Inumeráveis", com desenvoltura tipicamente brasileira, não teme ir às raias do sarcástico e do bufo. De qualquer modo, sua presença ao longo da narrativa, onde divide terreno com o registro lírico e o registro dramático, serve para confirmar que as transmigrações da alma de Fernão Matias Ribeiro, longe de configurarem uma profissão de fé, inculcam-se um ostensivo expediente literário, aliás usado pelo romancista com rara habilidade e notáveis resultados.
Insisto na designação "romancista". Embora a estrutura de "Os Rios Inumeráveis" tenha linearidade de novela -nove células ou episódios independentes, cada qual correspondendo a uma nova encarnação da alma do seu protagonista-, o fato é que essas células lhe vão compondo, por soma algébrica, o protéico caráter, em vez de simplesmente confirmar uma identidade definida "ab ovo". Identidade por assim dizer canônica na forma tradicional da novela, onde a sucessão de aventuras do herói serve as mais das vezes para provar a premissa da sua heroicidade. Pelo menos de parte do autor de "Os Rios Inumeráveis", não se percebe, em nenhum momento, qualquer empenho de reduzir a uma unidade fixa a mobilidade e multiplicidade fluviais do caráter de sua alma-herói, proclamadas desde o título do livro. Nesse sentido, o episódio dos cartões-postais que remata a narrativa é emblemático. É como se o romancista convidasse seus leitores a um jogo de armar: combinar os cartões díspares que são as nove vidas dessa alma em trânsito nalgum tipo de ordem significativa.
Aponta implicitamente para tal ordenação a circunstância de as suas encarnações se darem em momentos-chave da história do Brasil -a chegada da esquadra de Cabral, o quilombo de Palmares, a Inconfidência Mineira, a revolta de Canudos, a saga do cangaço, o integralismo e o Estado Novo, e o golpe militar de 64. Os amores míticos do boto com a índia, no "Livro 2º", e a burla de Lord Creek com os jovens byronianos de São Paulo, no "Livro 5º", por serem de menor significatividade histórica, podem ser vistos como uma uma espécie de "divertissement".
Na sua primeira encarnação, a alma do exilado português tem consciência do transe de sua passagem para o corpo do boto, passagem que o leitor acompanha através do relato em primeira pessoa. Nas demais transmigrações, a passagem é escamoteada e só a reaparição de elementos do nome do exilado português, Fernão Matias Ribeiro, para designar seus avatares, indica tratar-se de uma mesma entidade. Assim é que ela se chama Matias no episódio de Palmares, Fernando Ribeiro no episódio da Inconfidência, Mathias Creek ("creek" é arroio ou ribeiro em inglês) no episódio dos byronianos, Ribeiro no episódio de Canudos, Matias Fernando Ribeiro no episódio do cangaço, Fernanda Ribeiro no episódio dos integralistas, e finalmente Fernando Matias Ribeiro no episódio dos cartões-postais.
Essas diversas "personae" da mesma entidade desempenham um papel secundário, mas nem por isso insignificante, nos momentos históricos de sua aparição. O exilado português que renuncia às roupas européias para assumir os costumes selvagens confirma à maravilha a teoria da obnubilação de Araripe Jr. e corrige o erro original denunciado por Oswald de Andrade: "Quando o português chegou/ Debaixo de uma bruta chuva/ Vestiu o índio/ Que pena!/ Fosse uma manhã de sol/ O índio tinha despido/ O português". Radicaliza-se a obnubilação e integração da alma européia no novo habitat tropical por via do lance mítico-lírico de sua animalização em boto e do seu idílio com a princesa Mana. E, se o episódio do reino da Nova África lhe confere as dimensões heróicas do libertarismo de Matulu, estas vão-se amesquinhar em pavidez na dupla traição de Fernando Ribeiro à causa inconfidente e ao amor de Hermantina. O processo de amesquinhamento se agrava no logro encenado pelo falso Lord Creek para iludir "os sonhos de pobres poetas". Mas no episódio de Canudos a alma se redime das duas diminuições e ganha uma grandeza sinistra ao saber-se vinda de "muito longe (...) sofrendo na carne as mutações" que a esgotaram, para cumprir uma "missão de horror", diabólica, mas indispensável.
As maldades cangaceiras de Fernando Cão, visto como líder revolucionário pelo suposto historiador Eduardo Moniz, confirmam a investidura diabólica da entidade em sua nova encarnação; a investidura é reiterada pelo pacto com o Cão, e o pacto, bem como a metamorfose final de Fernando em Fernanda, apontam por sua vez para um declarado pastiche da matriz guimarães-roseana. O nome de Fernanda se mantém aliás na penúltima encarnação da alma que, despida de seu anterior diabolismo, é agora apenas uma "mulher de prazer" estipendiada pelo Chefe Supremo da AUB. E Fernando se chama outrossim, no nono e último episódio, o tímido colecionador que, encastelado em seu apartamento, se alheia da baderna nas ruas, das marchas pela Família com Deus pela liberdade, e fica a viajar imaginativamente, através dos seus cartões-postais, por uma "espécie de simulacro do mundo, sem perigos, sem tratantes, sem negociatas, sem bulha".
A regressão da alma, depois de completado o périplo brasileiro, ao seu primeiro avatar, agora em vias de embarcar de volta a Portugal, desenha um itinerário circular de "samsara" em que talvez não seja de todo despropositado ver o remate do processo de perfazimento de uma identidade nacional, daquela mesma "alma brasileira" a que a canção de Vila-Lobos deu cidadania musical. Alma feita de sensualidade e nostalgia, gosto do embuste e pulsões messiânicas, assomos libertários e preguiças acomodatícias, cordialidade e crueldade entretecidos numa trama complexa.
A arte do autor de "Os Rios Inumeráveis" é suficientemente manhosa para contentar-se com a fiel representação da trama, sem insinuar qualquer tipo de deslinde das suas ambiguidades. Para fazer jus à complexidade dessa trama, o romancista se vale, com um impressionante virtuosismo, de toda a sorte de recursos. Que podem ir da narração onisciente em terceira pessoa à primeira pessoa do fluxo de consciência. Da paródia da dicção quinhentista das crônicas de viagem ao pastiche da poesia pastoral do século 17, da prosa de ficção romântica do século 19, da literatura de cordel e do jargão jornalístico de nossos dias. Do diálogo simples aos diálogos dúplices, em tempos diferentes contrapontisticamente interligados. E assim por diante.
Esse pot-pourri estilístico, que faz lembrar o do "Ulisses" joyceano, dá a medida da proficiência da técnica ficcional de Álvaro Cardoso Gomes. Todavia, embora se tenha convertido em fetiche nestes tempos da idolatria tecnológica dos "efeitos especiais", a técnica nunca vale por si. Para valer, tem de estar a serviço de uma imaginação criadora capaz de estruturar suas figurações num todo coeso dotado de força de convencimento e significatividade intrínseca. Estou certo de que nenhum leitor sensível deixará de reconhecer tais qualidades em "Os Rios Inumeráveis", romance que assinala, sem favor, um momento epifânico da ficção brasileira de hoje.

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