São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
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Não é por aí...

ROBERTO CAMPOS

"Igualdade perante a lei e igualdade de oportunidades são os dois únicos princípios legítimos da economia sob um sistema liberal. São também os únicos que se coadunam com a idéia de justiça."
Embaixador J. O. Meira Penna

A vitória dos trabalhistas ingleses, embora da versão "light" Tony Blair, e a meia guinada na França, com um Jospin pasteurizado, deram alento, por reflexo, nestas nossas plagas tropicais, à velha turma do "Estado-providência". Um desses equívocos típicos da desinformação brasílica "à la" latino-americana.
As idéias "sociais" não surgiram com o "socialismo científico" de Marx. Têm raízes antigas, algumas no cristianismo antigo e medieval, outras no humanismo dos séculos 16 e 17 e no iluminismo que o sucedeu, no século 18. E não há como negar uma visão ética. Será o destino humano apenas consumir, cada qual egoisticamente por si próprio, atulhando-se de riquezas materiais, sem olhar em volta como vivem os outros, com suas angústias e sofrimentos?
Não é preciso ser nenhum gênio para perceber que há profundas contradições entre a visão religiosa-humanista, que enfatiza a solidariedade (ou a caridade), e a realidade de um mundo ocupado em satisfazer, antes de mais nada, seus apetites de prazer e seus desejos de ter coisas. Isso, se levado ao extremo, faria que cada indivíduo visse nos outros ou um estorvo ou um concorrente.
Claro que, se aprofundarmos um pouquinho, vamos observar que os homens alimentam muitas concepções conflitantes do que seja o bem comum -a salvação de todos. E, em nome das suas certezas, estão absolutamente dispostos a tratar como hereges os que pensem de modo diferente. E até a matá-los com requintes, para fazer-lhes entrar cabeça adentro, na marra, a verdade salutífera. Não é por outra razão que os grandes heróis do socialismo marxista -Lênin, Stálin e Mao Tsé-tung- foram também grandes carniceiros...
Também não é de hoje que alguns sonham com a possibilidade de transformar o mundo. Não apenas no mito, como no de Prometeu, ou no fazimento de utopias e bolações ilustres, desde Platão até Tomas Morus.
No começo da era industrial, alguns começaram a achar que era possível inventar uma engenharia para transformar o mundo. Foi assim que fez Saint-Simon, o tio-avô do marxismo e do nosso velho positivismo comtiano. Marx faria o mesmo ao achar que havia descoberto o "socialismo científico". Ele foi, sem dúvida, uma cabeça notável, um filósofo humanista que se debruçou sobre os problemas das diferenças materiais entre os homens e da alienação trazida pela nova civilização industrial e urbana.
Enquanto o cristianismo via a solução na caridade e na graça divina, Marx achou que o céu podia ser aqui mesmo. Bastaria reformar a economia na marra, acabando com a propriedade privada dos meios de produção. Isso seria o bastante para criar abundância para todos e fraternidade universal.
Não era por aí! Mas transcorreria quase um século e meio até que os que tinham passado por essa experiência dessem um jeito de livrar-se das consequências. Desde que o homem é homem, todas as tentativas de uns imporem virtudes a outros deram apenas inquisições, torturas e corrupção.
Em matéria de economia, geraram ineficiência e inflação. O radicalismo jacobino da Revolução Francesa, apesar da reconhecida competência no uso da guilhotina, não conseguiu dar conta da desordem dos preços causada pelos "assignats". Os socialismos implodiram, depois de um longo período experimentando aquilo que um importante pensador marxista contemporâneo, E. Mandel, chamou de "degenerescência burocrática".
Tudo isso provém de uma confusão (em alguns casos, puramente idiota) entre dois planos distintos, o dos "valores" e o da "eficácia". Um mundo em que todos sejam solidários, e se amem uns aos outros, seria muito desejável. Mas não se faz isso por medidas provisórias nem por intervenções do Estado (ainda mais o nosso "Estado a que chegamos"...).
Não tem nada a ver com a privatização da Vale, nem com taxas de juros. Pelo contrário, não há nada de mais "social" do que a maximização da eficiência competitiva da economia, porque é o que garante a maior quantidade possível de bens para todos. "Competitiva" é uma condição importante, porque as restrições oligopolistas da concorrência, em princípio, reduzem a eficiência do sistema.
Agora, uma parte do que é produzido, da renda global gerada, tem de ser extraída pelo Estado para o atendimento dos fins que lhe são próprios, tais como o cumprimento de certos deveres públicos (segurança, justiça, defesa, representação externa etc.); outra parte vai para os serviços que a sociedade deseja que se tornem, se possível, acessíveis a todos (educação básica, saúde pública, assistência à cultura e à ciência etc.); existem também obras públicas indispensáveis, cabendo ao Estado, frequentemente, uma função pioneira na construção da infra-estrutura; há, por fim, uma parcela a ser diretamente distribuída àqueles membros mais débeis da sociedade (o que também as igrejas e instituições benemerentes fazem em menor escala).
Quanto deve ir para cada rubrica é uma questão de bom governo, que, em última instância, nas democracias, se decide pela maioria política.
Mas há dois problemas interdependentes, que as esquerdas, pelo menos as da variedade tupiniquim, não conseguem compreender direito.
Um é definir quanto deve ir para quais fins. Outro é o da eficiência na execução, isto é, no uso dos recursos, limitação que os regimes socialistas jamais superaram. Isso, aliás, é difícil a qualquer governo, porque os políticos e burocratas que gastam o dinheiro não são os que têm de ganhá-lo. No Brasil, a eficiência do Estado vem piorando, e hoje talvez seja inferior até à da República Velha, com todos os seus vícios.
Esse estado de coisas está irritando cada vez mais o povo, que procura explicações simplistas na "corrupção" e clama por castigos. Mas o que muitas vezes é interpretado como corrupção é meramente o mau funcionamento de um Estado inchado por excessivas funções e poderes.
Definir quanto deve ir para quais fins é um processo que depende de cultura e experiência democrática e que tem de ser sempre aperfeiçoado. A eficiência, porém, é incompatível com o Estado dirigista e monopolista.
Os padrões gerados no mercado competitivo, embora nem sempre se apliquem diretamente às "funções típicas do Estado", oferecem os melhores gabaritos para referência do setor público. E, sobretudo, geram um ambiente de racionalidade e respeito pelas formas eficientes, educando o conjunto do público para praticar e exigir sempre mais produtividade.
Nossos soi-disant socialistas fariam bem em ler um notável trabalho recém-publicado do embaixador J. O. Meira Penna -"O Espírito das Revoluções" (Editora Faculdade da Cidade). O capítulo 10 -"A obsessão igualitária"- é particularmente relevante para expungir a confusão habitual entre "diferenças" e "desigualdades".
As "diferenças" entre indivíduos são criadas por Deus e pelo destino. Resultam em "desigualdades", que provocam competição, da qual decorre maior eficiência, que produz resultados melhores. As histórias da Europa Ocidental, da América do Norte e hoje da Ásia Oriental documentam a validade da assertiva de Hayek, citada por Meira Penna, de que "as desigualdades do passado deram como resultado o bem-estar moderno para os pobres e intelectualmente menos aquinhoados".
A China semicapitalista de Deng Xiaoping salvou mais pobres da pobreza do que a China igualitária de Mao Tse-tung. As "desigualdades" inerentes à competição no mercado são muito mais benignas do que as desigualdades criadas em seu próprio favor pela burocracia socialista, cuja ineficiência detonou a implosão do Leste europeu.
Nenhuma forma de organização econômica elimina as carências e a pobreza. O socialismo reduziu o tamanho do bolo, a pretexto de distribuí-lo melhor. Por outro lado, não faz parte do ideário liberal achar que o mercado tornou supérfluo o altruísmo, e esgota as nossas responsabilidades humanas de solidariedade. Não conheço um liberal que pense assim. Apenas os liberais suspeitam do "Estado-babá", porque a burocracia é capaz de estragar tudo. Até mesmo a filantropia...

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