São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
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Um teorema solar

SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Desprezo" é um filme mediterrâneo. O sol desarticula a memória dos personagens, seus trunfos na mesa de carteado da vida e da arte, e rearticula os seus desejos mais imediatos no plano da realidade palpável. Sob o olhar do Homero e Fritz Lang, um produtor deseja um roteirista que deseja uma mulher que deseja um bocado de dinheiro.
"Il cinema é un'invenzione senza avvenire" (o cinema é uma invenção sem futuro) -disse o inventor, Louis Lumière. Em 1963, depois da primeira morte do cinema, Godard repete a frase inaugural. Tendo o sol como testemunha, o cinema deixa de ser "invenção" para ser apenas uma mercadoria rentável. A mulher, principalmente ela, sabe também disso e, entre o sol e a bunda, coloca um livro para protegê-la dos raios mediterrâneos.
A arte nunca deixou de ser "une affaire de cul". O produtor sabe disso. Flaubert (apud Rubem Fonseca) sabia disso: "Réserve ton priapisme pour le style, foutre ton encrier". Uma mulher bonita, que tem a garantia de ser amada, exigindo que a câmara a lamba dos pés à cabeça, como a Brigitte Bardot da primeira cena, custa caro. A mulher torna-se aliada do produtor. A misoginia de Godard é o caminho direto para se chegar à inibição artística: a mercadoria e a mulher. O capital.
Não se sabe para quem Jack Palance diz a frase: "Quando ouço a palavra cultura, saco o meu talão de cheques". Se para o roteirista no momento de ser corrompido ou se para a esposa entediada. Fritz Lang não é um mediterrâneo. Resguarda a memória do sol, do produtor e da mulher. É fiel ao texto clássico. Lembra-se de Goebbels e da pistola. Um outro misógino, Charles Baudelaire: "Um homem vai ao tiro-ao-alvo com a mulher. Alveja uma boneca e diz à mulher: 'Faça de conta que é você'. Fecha os olhos e decepa a boneca. Depois, beijando a mão da companheira: 'Meu anjo querido, como te sou grato pela minha boa pontaria!'±".
A pontaria certeira de Godard, em "O Desprezo", despreza a verossimilhança. Um acidente providencial mata, ao mesmo tempo, o produtor e a mulher. "O Desprezo" é um teorema solar que Godard demonstra, a fim de que "se deixe concluir o que se começou" -o filme. Isso diz o cineasta Fritz Lang na cena final, que se abotoa, como colchete, à cena inicial: a lente da câmara capta o espectador. Ninguém fica na sombra.

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