São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
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Primórdios de Cortázar

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Maurice Blanchot chamava a nossa atenção para o que há de aparentemente arbitrário, mas, paradoxalmente, revelador, na figura final assumida pela obra de um artista. O arremate chega de surpresa, com a morte, interrompendo e estabelecendo limites para um processo virtualmente infinito. O controle autoral sobre o que fica para a posteridade se encerra com ela. Daí a importância das escolhas que os autores fazem em vida, julgando aquilo no que ainda se reconhecem e pelo que esperam ser reconhecidos.
A menos que alguém decida em seu nome, o que, para os grandes, é inevitável. Remexer as gavetas e o arquivo morto dos medalhões depois que sua vigilância cessa rende dividendos à indústria editorial -aposta segura-, mas também interessa à crítica e aos admiradores. Estão lá os bastidores de um processo criativo, os alicerces do que se construiu.
Este é o caso de "O Exame Final" e de "Diário de Andrés Fava", que Cortázar escreveu quando ainda jovem, no início dos anos 50, antes dos contos de "Bestiário", e que só vieram a público depois de sua morte, em 1984. São livros interligados. Fava é um alter ego do autor, personagem do primeiro, um romance alegórico passado no meio intelectual de Buenos Aires, e pseudo-autor do segundo, um caderno de apontamentos, aforismos, idéias e rascunhos de um escritor em formação.
As peças reunidas em "Adeus, Robinson" não deixam de fazer parte deste universo de filhos menos queridos ou quase enjeitados. Cortázar começou como dramaturgo com "Los Reyes", de 1949, mas não fez muito caso de reeditar esta peça, raridade bibliográfica até novas impressões em 1966 e em 1970. O teatro era um gênero bissexto para o autor de "Todos os Fogos o Fogo". Além dos dois "jogos de palavras" -breves comentários dramáticos sobre as relações familiares e de classe com toques de lirismo surreal-, compõem o volume "Nada para Pehuajo" e a peça de radioteatro que dá título ao livro. Na primeira, aparece o mesmo tom insólito, cristalizado na reunião casual num espaço fechado, um restaurante estranhamente aprisionador, de tipos diversos (um juiz gourmet, que janta feliz, após ter condenado um homem à morte, um casal de apaixonados, um vendedor de bugigangas, um burocrata dos correios); já "Adeus, Robinson" é uma alegoria política que retoma, invertido, o mito do realizador e conquistador incansável.
Se "O Exame Final" não é um romance inteiramente bem-sucedido, tem o mérito de apresentar o universo em que Cortázar nasceu para a literatura, no fim dos anos 40. O clima de opressão e falta de horizontes, metaforizado numa névoa espessa, misteriosa e ameaçadora, que se abate sobre a noite portenha e acompanha o périplo de dois casais de jovens intelectuais e um amigo jornalista por Buenos Aires, na véspera e no dia de uma prova universitária decisiva. A cidade aparece como uma grande "casa tomada", a geografia de suas ruas, subvertida pela estranheza, domina o livro, como a de Paris toma conta de "Rayuela". Rivadavia, Corrientes, Plaza de Mayo são vistas por olhos de pesadelo, sitiadas por motins, histeria e desorientação coletiva, vigiadas pelo cinismo e truculência oficiais.
O apreço pelo ideal de pureza e pelo sublime, que está tanto no mito grego quanto na religião da arte professada por Mallarmé, aliado à eterna crise existencial do intelectual da periferia, orienta suas leituras (Keats, Rilke, Valéry, Hoelderlin), análogas às da geração de 45 brasileira. São estas afinidades eletivas que aparecem justificadas e problematizadas no "Diário", livres das amarras da estrutura narrativa do romance.
O jovem professor que foi Cortázar (liceu e universidade), de vasta cultura humanística, livresco, amigo do estilo elevado e erudito, paga aqui tributo a sua própria formação, ainda bastante influenciado por Arturo Marasso, seu professor, por sua vez, conhecedor do simbolismo francês e autor de um estudo sobre Mallarmé (cuja importância é lembrada por Davi Arrigucci Jr., um conhecedor entranhado de sua obra).
Células narrativas e os temas cortazarianos já estão lá (o confinamento no cotidiano, a estranheza do habitual, a estrutura intrincada na obra-de-arte), mas o salto de qualidade virá com o abraçar do conto, forma tensa e intensa que Cortázar recria para dar conta de sua matéria expressiva complexa. A simplificação do estilo corresponde a um adensamento da forma, adquirindo contornos pessoais na síntese única entre o familiar e o aberrante, o real e o sonho, da mimese e da crítica.
Exceção feita ao "Diário", caberia às edições brasileiras um maior cuidado na apresentação dos textos, restrita a orelhas insuficientes para situar o leitor. No caso de "Adeus, Robinson", por exemplo, a identificação pura e simples de uma fábula anticolonialista empobrece a história do texto. O Robinson que chega para uma visita a sua velha ilha, agora moderna e civilizada, e tem seu roteiro preestabelecido pelas autoridades locais, restrito a uma entediante sucessão de atrações oficiais, impedido de ouvir o povo ou de com ele se misturar, este Robinson cortazariano que acaba pondo em xeque suas relações ambíguas com os nativos (civilizadora ou predatória?) deveria ser lido contra o pano de fundo superpolitizado de 1968 e adjacências, das relações da intelectualidade hispano-americana com Cuba e com o realismo socialista. Sua melancolia traduz o desmoronamento do ímpeto realizador e acumulador do amo de Sexta-Feira, incapaz de compreender o efeito final sua vontade de poder, também ele ambíguo (uma ilha modernizada, mas acorrentada).
O próprio Cortázar tomou parte de diversas polêmicas entre os que criticavam e os que sustentavam o regime cubano, apesar da censura e dos enquadramentos dos escritores ao política e esteticamente correto da revolução. Manteve seu apoio pessoal em diversas visitas à ilha e em polêmicas famosas -com David Viñas, com José Maria Arguedas, com Óscar Collazos e Vargas Llosa (documentada no volume "Literatura em la Revolucion y Revolucion en la Literatura", Ed. Siglo Veintuno, 1970), ou ainda por ocasião da retratação pública a que foi forçado o poeta cubano Heberto Padilla. É neste contexto, das relações entre arte e engajamento, que "Adeus, Robinson" tem a acrescentar à compreensão da figura pública de Cortázar. Se não a revoluciona, traz novos matizes a sua biografia intelectual, o que já é mérito suficiente e justifica sua oportuna publicação.

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