São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
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Um velho gênero de autopunição

JORGE CALDEIRA
SERGIO GOES DE PAULA

JORGE CALDEIRA; SERGIO GOES DE PAULA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Às vezes as mixórdias são reveladoras. Como, por exemplo, na matéria "Um novo gênero de auto-ajuda" do último domingo neste Mais!, sobre a "Viagem pela História do Brasil". A ambivalência começa pela própria definição do objeto, já que não trata apenas de uma reflexão sobre a obra, mas também sobre um fato que, para o resenhista, é espantoso: uma história do Brasil ocupar um lugar na lista de livros mais vendidos, ao lado de um "guia de modas" e outro de "sabedoria simples", como diz ele.
Tratando deste segundo território, do sucesso de mercado, com esta sabedoria verdadeiramente simples, dá o campo por definido, e a ele contrapõe o espaço do "verdadeiro conhecimento", o "das regras do método e da atitude de uma ciência". Separando com esta clareza de gibi o inferno do céu, nada mais fácil que chegar à conclusão de que dois mundos irão se opor; num deles deverá estar a obra, noutro, o analista. Mas escapa, assim, uma possibilidade: e se a obra for construída inteiramente no universo cinzento que este esquema tenta negar? A resposta a tal pergunta só pode ser encontrada no que, no texto, está para além dos objetivos explícitos, espaço bem mais rico que o do esquema linear.
No que escreve para além do objetivo consciente de resenhista, está a chave do mistério. Para quem se coloca no campo das regras do método, demonstra pelo conjunto obra/resultados de mercado uns sentimentos voluptuosos demais. A linguagem científica dá lugar à de fã: enxerga um autor mítico, falando "do alto de seu enorme sucesso de vendas". Sobre a obra de "auto-ajuda", derrama adjetivos de colunista social: "belíssima edição", "inteiramente em cores", "notável projeto gráfico", "acurado conceito de multimídia", "ambiciosa empreitada".
Mas sabemos de antemão que esta volúpia do elogio resultará em castigo, em nome da premissa radical. Como admitir o prazer dos adjetivos se o objeto está situado no mundo decaído que está para além de seu mosteiro intelectual, um mundo que define como "plug-and-play"? Haverá, portanto, punição ao culpado do desvio -a obra que lhe provocou os adjetivos. Punir algo que deu também prazer: comportamento de vítima da indústria cultural, segundo a descrição de Adorno: "Ao expor sempre de novo o objeto do desejo, o seio no suéter ou o torso nu do herói esportivo, (a indústria cultural) não faz mais que excitar o prazer não-sublimado que, por hábito de privação, se converteu há tempo em prazer puramente masoquista. Não há situação erótica que não una à excitação a advertência precisa de que não se deve chegar a este ponto".
Masoquismo regressivo: eis o sentimento que rege o texto -e daí sua imensa ambivalência; o prazer só aparece na punição. Seu sentido não decorre das premissas racionais, mas do que delas extravasa: raiva de ter que elogiar a tecnologia nova, a adequação do material a esta tecnologia, as possibilidades que ela oferece. O lado negativo surge, como os elogios, na linguagem do cidadão comum, leitor de livros "baixos". É aí, na estrutura interior deste abandono ao prosaico sempre negado na consciência do texto -e revelado como recalque em elogios e xingos excessivos- que a "Viagem pela História do Brasil" cumpre seu destino de contar a história para o cidadão comum. Até mesmo para o cidadão comum que está por trás do resenhista .
Aí há coisa mais funda, que, esta sim, merece discussão. Por que o cidadão e o cientista estão separados no texto por uma muralha intransponível para a linguagem consciente? Arrisque-se uma hipótese tentativa, aberta. Nos últimos anos a história do Brasil passou por uma situação esquizofrênica -e o sucesso da "Viagem pela História do Brasil" toca a ferida. Longe vai o período em que Celso Furtado e Caio Prado, de uma certa forma, encerram, do historiador como encarnação da consciência do cidadão.
A transformação da atividade de historiador em produção especializada foi um dos grandes sucessos do regime militar. Destituída a história de seu papel de ciência geral da sociedade, para uso de todos, não foram poucos os historiadores que, retirados do debate público, tiveram de compensar sua impotência cívica com a retórica de que a verdade só se revela àqueles capazes de sofrer no isolamento. Exceções como Luiz Felipe de Alencastro, Boris Fausto ou Emir Sader apenas confirmam a regra.
O dramático desta situação é que, nos últimos 25 anos, quase não se produziram (bons) livros de história do Brasil destinados ao público geral: a obra de Ricardo Maranhão, Luiz Roncari e Antonio Mendes, publicada pela Brasiliense no início dos anos 70, a de Manoel Maurício de Albuquerque, nos anos 80, a de Boris Fausto, nos anos 90, e a de Darcy Ribeiro são as exceções. É imenso o número de brasileiros que, se quiserem conhecer o assunto, precisam surrupiar o livro escolar do filho -ou, então, aprender as formalidades da linguagem técnica. Esta a realidade que está entre a produção acadêmica e o livro didático.
Pobre, não? Pois é para o fim desta situação de pobreza que aponta o sucesso da "Viagem pela História do Brasil", como apontam o sucesso da "História da Vida Privada no Brasil" e de "História das Mulheres no Brasil". Trazer a discussão histórica do terreno da especialidade para o do debate geral não é rebaixar a história -a não ser para os raros que perdem com a mudança. Gente de erudição pernóstica, posando de consumidores "cultos" a quem a pobreza cultural permite o papel de detentores de segredos a serem revelados aos não-iniciados. Não é à-toa que, também ameaçando com a queda das barreiras entre público especializado e público geral, a excelente "História da Vida Privada no Brasil" tenha sido tratada pela revista "Veja" como livro pornográfico, por um atravessador de conhecimento igualmente ressentido com a liberalização do mercado.
Neste universo, é estapafúrdio o motivo "técnico" do mau tratamento de "Viagem pela História do Brasil": a obra não cuidaria da história do país como um caso-padrão para demonstrar uma "teoria" que pode ser aplicada a qualquer povo, em qualquer época. Para o resenhista, fazer história é mostrar que existem exploradores e explorados; este truísmo vem a ser o núcleo do conteúdo de verdade que obrigaria o historiador ao isolamento, por conhecer verdades perigosas para a sociedade (idéia que só viceja em ditadura, não por acaso). Tudo o que não se enquadra nesta grande e banal verdade só pode ser expresso em linguagem de folhetim: "ideologia pós-tucana de fácil consumo", "arroubo de populismo", "conversa", "história com final feliz".
Como sempre, o adjetivo, não o substantivo, revela: para uma obra que não tem "nada que não se encontre num manual de primeira série" é demasiada a revolta do circunspecto pesquisador. Como também é o seu desejo de autoridade: uns tantos erros de revisão -que, por sinal, a própria tecnologia inovadora permite corrigir on line, via Internet- são, para ele, suficientes para assentar de novo os muros, concluir pela premissa: pôr, de um lado, o público e os autores ignorantes da "Viagem pela História do Brasil"; de outro, o gueto dos conhecedores. Nem que, para isso, seja preciso construir um texto excruciante. A liberdade, muitas vezes, é um suplício para velhos prisioneiros.

Jorge Caldeira e Sergio Goes de Paula são co-autores de "Viagem pela História do Brasil".

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