São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
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As responsabilidades do crítico

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A crítica de teatro é, aos olhos de quem lida com literatura ou poesia, um gênero peculiar e estranho. Quando alguém como Nelson de Sá reúne entre duas capas o resultado de mais de meia década de acompanhamento quase diário da cena (perdoem-me a redundância) teatral, sobretudo da brasileira de São Paulo, o resultado é um amplo painel do qual os especialistas em letras parecem há muito -desde os tempos dos "rodapés" jornalísticos"- incapazes de fornecer sua versão.
A crítica literária nacional está irremediavelmente dividida entre jornal e universidade, duas facções que, com exceções contáveis nos dedos da mão de um mutilado, só concordam em ignorar o último meio século de produção. A de teatro, ao contrário, esbanja saúde e, por meio do livro em questão, faz jus a uma tradição crítica que, com Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, Jacó Guinsburg e outros, frequentemente superava, em lucidez e vigor, o teatro e a dramaturgia nacionais.
A estranheza, porém, vai mais longe. Os juízos enunciados numa coletânea de artigos sobre literatura (ou música, artes plásticas, cinema) podem geralmente ser cotejados com seus objetos. A quem, no entanto, é dado ver ou rever uma encenação que já tenha saído de cartaz? E quem -descontados os outros críticos, algumas pessoas (provavelmente uma minoria) do "métier" e meia dúzia de fanáticos- terá assistido a uma parcela significativa das peças comentadas em "Divers/idade"? (O título sugere, além do óbvio, um ir a fundo, porque "diver" se traduz do inglês como "mergulhador" -mas nem por isso deixa de ser um tipo meio gasto de trocadilho).
Um dos aspectos característicos da crítica de teatro é o seguinte: se uma obra literária se revela ruim e é esquecida, tudo o que se escreveu sobre ela seguirá o mesmo caminho; se ela se tornar um clássico, as apreciações mais inteligentes perdurarão como suas humildes notas de rodapé; mas, no caso de uma encenação, a crítica é, no mais das vezes, sua única forma de sobrevivência. Além disso, aquilo que muitos consideram a grande falha do jornalismo cultural, ou seja, sua necessidade de responder rapidamente ao que lhe é apresentado, torna-se, no caso desta arte específica, seu maior mérito (e uma de suas principais responsabilidades), pois, se o diretor, o ator, o cenógrafo etc. acatarem de alguma forma algo do que diz o crítico, eles podem alterar seu espetáculo no dia seguinte. Trata-se de algo raríssimo, mas teoricamente possível.
Como Nelson de Sá enfrenta tal responsabilidade e o que faz de possibilidades como essas? Ele não é um crítico de gabinete, ou melhor -nos termos da arte que elegeu-, de auditório. Tem experiência pessoal de muito do que compõe uma encenação, conhece os bastidores, sabe o que se espera de um ator, leu o repertório clássico e está à vontade com Shakespeare e Calderón de La Barca, com Bertolt Brecht e Harold Pinter. Seus textos -que falam também do que se está escrevendo e encenando no exterior- são concisamente informativos, objetivos e estão livres tanto do jargão tecnicizante acadêmico quanto do inacreditável blablablá que, à menor provocação, nossos diretores adoram derramar. Sua paixão sincera pelo teatro se evidencia, a cada página, sob a forma da generosidade que busca entender sem perdoar, isto é, impondo limites bem claros à condescendência.
O pessoal de teatro é arquiconhecido pela sua hipersensibilidade e, por isso, não é necessário dar muita atenção às polêmicas nas quais se reclamava da dureza de um crítico que faz o máximo para ressalvar claramente o que quer que pode ser salvo mesmo no pior dos espetáculos. O que emerge da reunião de seu trabalho é que, em vez de escrever manifestos teóricos expondo suas teses, Nelson tem preferido dispersar idéias e propostas nos seus comentários, não apenas fazendo prognósticos, mas também lutando, com seus meios, para que eles se cumpram. E, ao que parece, muitos andam se cumprindo. Se isto se deve, em alguma medida, à sua influência, é difícil de determinar.
"Divers/idade", mais do que uma coletânea de artigos ou uma história, é propriamente uma crônica. É numa fonte assim que os historiadores futuros buscarão suas informações e é num espelho desses que os envolvidos (criadores ou espectadores) verão o que vem acontecendo nesta década.
Para que ambas as necessidades fossem mais adequadamente satisfeitas, no entanto, este volume de quase 500 páginas poderia muito bem ter estampado a ficha de cada peça comentada e a data de publicação dos comentários. Vale a pena acrescentá-las numa próxima edição. O que conta mesmo é que o teatro recente dispõe agora de uma obra capaz não só de informar o público de teatro como de fornecer sugestões úteis aos seus profissionais. Se estes as aceitarão, isso já é uma outra história.

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