São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
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O lugar onde mora a mente

Livro desvenda mecanismos e estruturas da atividade mental

VITOR GERALDI HAASE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma senhora com seus oitenta e poucos anos de idade dá uma entrevista por ocasião de um estudo realizado na Califórnia, o qual acompanhou durante várias décadas o grau de satisfação matrimonial de um grupo de casais.
Essa senhora declara que sempre foi feliz no casamento, que ela e o marido são verdadeiras almas gêmeas e atribui o sucesso do seu relacionamento matrimonial a essa comunhão de interesses. Entrevistado separadamente, o marido confirma essa impressão.
Os pesquisadores observam que, de fato, de cada meia dúzia de frases pronunciadas por um dos dois, pelo menos uma se refere ao cônjuge.
Há 45 anos, no entanto, essa mesma senhora havia declarado para os entrevistadores que o seu casamento era uma droga, que ia de mal a pior, que o seu marido não era carinhoso e não dava a mínima atenção para ela, que às vezes ela tinha a sensação de que ele era mais uma criança de quem ela tinha que cuidar e que ela não pedia o divórcio apenas pela falta de alternativas.
Como entender isto? Do ponto de vista motivacional, uma explicação óbvia pode ser o fato de que, após investir mais de 60 anos em uma empreitada como o casamento, a pessoa tem dificuldades em admitir que o mesmo foi um fracasso ou que, pelo menos, teve os seus altos e baixos.
Outra explicação poderia se basear em função da lealdade desenvolvida para com o companheiro de tantos anos. No entanto, o que mais nos interessa aqui são os mecanismos mentais pelos quais essas e outras distorções no processo de recordação se tornam possíveis.
Capacidade de categorização
Um outro exemplo vem de um estudo realizado por Jean Piaget, na Suíça, há mais de 40 anos. Ele forneceu uma série de palitos de diversos tamanhos a algumas crianças com idades entre cinco e oito anos e pediu-lhes que dispusessem os palitos na mesa formando uma fileira.
Os mais velhos colocaram os palitos formando uma série ordenada, que ia do maior para o menor. Os menores dispuseram os palitos de forma aleatória, não evidenciando a capacidade de categorização que Piaget denominou de seriação.
Alguns meses mais tarde, as crianças menores retornaram ao laboratório, e o pesquisador solicitou que dispusessem os palitos sobre a mesa exatamente da forma como tinham feito anteriormente. A maioria das crianças, que agora já dispunha da habilidade de seriar, organizou os elementos de forma ordenada, indo do maior para o menor.
Os meninos garantiram que fora exatamente assim que haviam procedido na ocasião anterior. A interpretação de Piaget é de que a nossa mente é organizada evolutivamente sob a forma de estruturas lógicas tão poderosas, que permeiam todos os domínios da atividade mental.
A criança que está em uma fase determinada do desenvolvimento acha que o modo de pensar característico desta é tão natural, lógico e até mesmo impositivo, que não pode conceber ter procedido diferentemente em outra ocasião.
Limitação das teorias
Os dois exemplos ilustram um aspecto do processo de recordação denominado construtivo, ou seja, o fato de que as nossas lembranças são uma reinterpretação do que foi anteriormente vivenciado, em função do contexto presente e das transformações sofridas pela nossa atividade mental em termos de experiência acumulada e rearranjos na rede conceitual.
As teorias psicológicas e neurobiológicas baseadas na hipótese do processamento de informação, ou seja, em uma analogia estrita da mente com um programa de computador, apresentam enorme dificuldade em explicar tais fenômenos.
Grosseiramente falando, essas teorias tratam o processo de recordação como se ele consistisse simplesmente na busca de informações contidas em uma ficha, arquivada alfabeticamente em um armário, ou em arquivos, com endereços de acesso aleatório armazenados em um computador.
Os dados psicológicos apontam para um sistema que funciona de modo muito mais dinâmico, em que a influência do contexto é de primordial importância e no qual a vivência original é reconstruída a partir de fragmentos dispersos.
Um dos grandes desafios de nossa geração de pesquisadores do comportamento ou da cognição, como se fala hoje em dia, consiste justamente em tentar entender quais estruturas e mecanismos cerebrais são responsáveis por essas características da atividade mental.
Código analógico
É justamente sobre isso que trata o livro recentemente lançado pelo pesquisador Henrique Schützer Del Nero, "O Sítio da Mente - Pensamento, Emoção e Vontade no Cérebro Humano" (Collegium Cognitic, São Paulo, tel. 011/211-4005, R$ 40).
Del Nero, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, se preocupa com os outros modos pelos quais o cérebro processa informação, além do código binário ou digital, tradicionalmente empregado por computadores, e que não permitiria a flexibilidade exibida por nossa atividade mental caso fosse a única estratégia adotada.
Ele argumenta que para isso é necessário um código analógico, sensível em tempo real à dinâmica do contexto biológico, mental e cultural em que o nosso comportamento adaptativo se desenrola. E de fato existem boas evidências experimentais para isso. Uma das principais vem de uma série de experimentos realizados em 1989 por Wolf Singer e Charles Gray em Frankfurt.
Utilizando-se de técnicas de registro simultâneo da atividade de diversos neurônios no córtex visual de gatos, os pesquisadores foram capazes de demonstrar que a atividade dessas células se correlacionava temporalmente em função das características perceptivas dos objetos de estímulos.
Auto-organização
Se as características dos estímulos eram concordantes com aquelas para as quais as células eram responsivas, os neurônios tendiam a descarregar uma sincronia temporal, a qual era de natureza oscilatória, ou seja, modulada periodicamente.
Se as características dos estímulos eram discordantes, os neurônios dessincronizavam sua atividade e suas atividades oscilatórias se mantinham independentes.
Esses achados parecem confirmar a hipótese de que um mecanismo auto-organizatório, que envolve sincronização através de oscilações nas descargas neuronais, pode ser o responsável pelas características dinâmicas da atividade cerebral.
A metáfora empregada por Del Nero é a de departamentos virtuais. Uma empresa é organizada em função de departamentos espacialmente segregados e estanques, que funcionam de modo automático.
As exigências do mercado podem fazer com que esse modo corriqueiro de funcionamento não seja suficiente, exigindo que os diversos departamentos se associem e passem a funcionar de modo mais flexível, criando verdadeiros departamentos "ad hoc". Um mecanismo semelhante ocorreria no cérebro.
Os modos mais automáticos ou "instintivos" de funcionamento são levados a cabo por algoritmos digitais, que correspondem ao funcionamento de grupos de neurônios espacialmente segregados.
Código de barras
As exigências de adaptação a contextos variáveis impõem, entretanto, um outro modo de funcionamento, que congrega temporariamente a atividade de neurônios amplamente dispersos pelo córtex e outras estruturas cerebrais, criando verdadeiros departamentos virtuais no cérebro.
A tese original proposta por Del Nero é de que o período das oscilações, que possibilitam a sincronização na atividade de neurônios espacialmente segregados, pode constituir uma espécie de código de barras que processa a informação de modo analógico, dinâmico e sensível às variações contextuais.
É comum verificarmos no Brasil que celebridades acadêmicas fazem carreira em cima de cópias literais, ou melhor, traduções de obras publicadas no exterior. Este certamente não é o caso de "O Sítio da Mente". Além de ser original, o livro ainda permite múltiplas leituras.
Até o capítulo 11, o autor traça um panorama do que se se convencionou chamar de ciência cognitiva, ou seja, a empreitada interdisciplinar de estudar cientificamente a mente e vai introduzindo suas idéias no corpo do texto, para aprofundá-las em notas.
A partir do capítulo 12, ele explora as consequências do seu modelo para a compreensão de fenômenos que vão das doenças mentais à teoria do conhecimento e às perplexidades éticas da nossa era globalizada e neoliberal.
Um verdadeiro "tour de force" intelectual, que prende nossa atenção do começo ao fim, ensinando, divertindo e, principalmente, aguçando a imaginação. Esse livro vem se juntar a uma safra de obras recentes de cunho simultaneamente didático e investigativo, que procuram responder às principais questões sobre os fundamentos neurobiológicos da consciência.

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