São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
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Máquinas que produzem cretinos

GILBERTO DIMENSTEIN

Em Nova York, um psiquiatra encontrou uma mina de ouro: os cães.
Por R$ 300 a hora, Peter Borchelt promete resolver os "traumas" de qualquer raça canina, ajudando a superar desvios de comportamento como agressividade ou desobediência.
Quem não tem dinheiro, mas tem problemas de comunicação com seu cachorro de estimação, pode recorrer a um "pet psychic". Por R$ 30 os videntes especializados em animais se propõem a traduzir o pensamento dos cachorros.
Maluquice? Experimente discar para (800) 942-4660. É um serviço de limusine especializado em animais de estimação, oferecendo assento especial, à prova de "surpresas" nas curvas. Os R$ 20 incluem exibição de vídeo sobre animais para animais.
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O jornal "The New York Times" descobriu que pelo menos 100 mil nova-iorquinos gastam, por mês, R$ 1.000 com seus animais de estimação, entregando-os aos cuidados de salões de beleza, hotéis de luxo e roupas de grife.
Sem exagero, é mais caro ser cãozinho de madame aqui do que policial militar ou plantonista de pronto-socorro público no Brasil.
Para não deixar o cão sozinho no apartamento, os donos pagam até R$ 500 por mês por creches especializadas. Comparando: um aluno brasileiro de escola pública custa, em média, R$ 50 mensais.
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Modismos como esses não estão restritos a Nova York. Prosperam pelos EUA serviços especializados em tomar dinheiro de quem se dispõe, como diria um ex-ministro do Trabalho, a tratar cachorro como gente.
Só nos EUA, o mercado potencial para esse tipo de serviço é enorme. Afinal, são 30 milhões de gatos e 35 milhões de cachorros, movimentando R$ 20 bilhões por ano.
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Psicólogos detectam que cada vez mais o animal de estimação é tratado como se fosse um membro da família, cuja morte provoca a mesma comoção reservada aos humanos.
Ao fazer pesquisa para esta coluna, li na Internet relatos de mulheres que diziam não saber se preferiam perder o cachorro ou o marido.
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Por trás das evidências, psicólogos e sociólogos buscam as mais variadas explicações. O animal de estimação seria o amigo ou parente ideal: dá afeto incondicional e não questiona as ordens recebidas.
Um dos motivos desta afetividade exagerada pelos animais está em estatísticas colhidas pelo censo americano. Desde 1970, o número de solitários não pára de crescer, revelando a crise da família. Segundo o governo americano, 23 milhões de pessoas vivem sozinhas. Divorciados e solteiros já são 30% da população.
Estudiosos explicam que, somada à crise da família, a sociedade valoriza doentiamente o desempenho profissional, a busca do sucesso pelo sucesso.
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Traduzindo: o culto ao animal de estimação, substituindo o contato humano, é uma doença social.
Essa doença tem uma sólida versão tecnológica. Curioso é que, graças à Internet, nunca foi tão fácil se comunicar a qualquer hora com qualquer pessoa do planeta. Duro é falar com o vizinho ou conviver com os familiares.
Os cretinos da tecnologia -gente com assento reservado nos debates sobre o futuro da humanidade- vendem a idéia de que conversar via Internet, olhando para uma tela, é um gesto supremo de inteligência.
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O encanto da Internet é aproximar as pessoas, permitindo mais acesso ao conhecimento -e, aí, é um instrumento excepcional, a ser disseminado. O problema é o deslumbramento, movido pela ilusão.
Estudos recentes produzidos nos EUA por pessoas que gostam de tecnologia (e não os retrógrados) mostram como os computadores foram supervalorizados, gerando mitos.
Para entender: o computador já produziu no Brasil alguém melhor do que Machado de Assis ou Graciliano Ramos?
É fato, porém, que, se estivessem vivos, redigiriam seus textos na tela de um micro.
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Trocar um bate-papo real pela tela do computador é um desvio de comportamento. É, em essência, a diferença entre o prazer humano de interagir com um cachorro e contratar um psiquiatra para tornar o animal mais feliz.
Ao ver o animal no divã, um indivíduo de bom senso deve ter apenas uma certeza. Entre os três, o cachorro é o único saudável.
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PS - Por falar em seres humanos, em Ituituba, interior de Minas Gerais, Deocles Machado, de 92 anos, teve uma idéia genial. Pediu emprestado terrenos abandonados na cidade.
Em 36 locais diferentes ele plantou frutas, verduras e legumes. Metade da produção vai para os proprietários, a outra metade é doada para oito creches, uma escola, dois asilos e uma clínica psiquiátrica. Ele próprio ajuda a plantar e a colher.
Iniciativas como a do senhor Deocles estão sendo catalogadas pela Universidade de Brasília com apoio do Ministério da Educação. A idéia é inspirar ações sociais criativas.

Fax: (001-212) 873-1045
E-mail gdimen@aol.com

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