São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
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A DIMENSÃO DA CRISE

Greve das polícias em vários Estados, manifestações de rua de organizações oposicionistas, justamente em uma semana de turbulência entre os partidos governistas. Tudo somado, a opinião pública pode ficar com a sensação de que o país vive uma crise gravíssima, que alguns até já consideram pré ou pararrevolucionária.
Convém, por isso, tentar mergulhar um pouco além da superfície dos fatos. Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que o estado de rebelião afeta um único segmento social, o do funcionalismo público.
Se ganhou uma dimensão maior, nas últimas semanas, deve-se ao fato de que a fatia armada do funcionalismo (os corpos policiais) está na linha de frente das reivindicações, o que acrescenta dramaticidade à situação.
Uma coisa é ver os funcionários burocráticos do governo de braços cruzados, como já aconteceu com certa intensidade no passado recente. Outra, mais complexa e espetacular, é a polícia, não raro de armas na mão, exigindo reajustes salariais. Daí até a se imaginar um ambiente de revolta ampla, há um abismo.
Nem por isso cabe minimizar a gravidade da situação. Pelo ângulo político-institucional, a rebelião das PMs cria um quadro delicado, mesmo que a crise se dissolva nos próximos dias. Ficarão, de todo modo, as cicatrizes da quebra da hierarquia.
Se a segurança pública já funcionava mal antes da crise, pior será com essas afrontas ao princípio da autoridade e com a perspectiva de que os policiais voltem ao trabalho (e o farão, por bem ou por mal) insatisfeitos com o desfecho da crise.
E a insatisfação parece inevitável. Os salários dos policiais, como da maioria do funcionalismo, são de fato baixos, uma constatação que a população aceita majoritariamente. Mas a crise financeira do poder público impede que os reajustes a serem concedidos sejam os desejados pelos grevistas.
Impõe-se, nesse ponto, reconhecer que a reforma do Estado demorou tempo demais. O governo parece ter trabalhado sempre com a hipótese de que só poderia melhorar os salários do funcionalismo depois de racionalizar a máquina pública.
Dois anos e meio depois da posse, não ocorreu nem uma coisa nem a outra. O funcionalismo federal ficou com os vencimentos congelados desde o lançamento do Plano Real, que controlou a inflação, mas não a eliminou. Houve, portanto, uma corrosão no salário dos servidores.
É inevitável, diante de toda essa situação, que haja fortes respingos na popularidade do presidente da República, ainda mais que a sociedade parece considerá-lo responsável pelas deficiências do aparelho policial, como aponta a pesquisa do Datafolha.
As vaias que Fernando Henrique Cardoso tem enfrentado, como aconteceu ainda na sexta-feira em Corumbá (MS), não podem ser tomadas como mera manifestação de um punhado de oposicionistas.
É isso, mas não apenas isso. Para o presidente que derrubou uma superinflação que já se tornara crônica, era de supor que, para cada mil que o vaiassem, houvesse 10 mil dispostos a aplaudi-lo. Se os há, não se manifestam. E é compreensível que seja assim: o tipo de política hoje hegemônico na América Latina, cujo eixo é o enxugamento do Estado, tem limites políticos dados pela incapacidade de reduzir a exclusão social, o que gera descontentamento e deixa vagando permanentemente o fantasma de uma explosão.
Mas o desgaste inegável da imagem presidencial não significa que Fernando Henrique esteja sitiado. O mais elementar bom senso indica que ele é a cabeça do único projeto político articulado disponível no cenário, com um inequívoco respaldo internacional e empresarial. O empresariado pode até queixar-se do ritmo das reformas, mas não contesta o rumo da política econômica.
Ademais, faltam uma oposição igualmente articulada e um chefe oposicionista eleitoralmente forte. Todos os protestos representam insatisfações difusas, não canalizadas nem capitalizadas institucionalmente por qualquer partido, apesar das tentativas do PT nesse sentido.
O presidente entra, portanto, nas preliminares do jogo sucessório com um cacife reduzido em relação às expectativas, talvez exageradas, que antecederam sua posse, mas ainda suficiente para ganhar o jogo. A menos que a imagem de inação se mantenha, o que abriria as portas para o imponderável.

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