São Paulo, quinta-feira, 7 de agosto de 1997
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Um juiz subdesenvolvido

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Meus amigos, no domingo passado fomos miseravelmente garfados. E o pior: por um juiz brasileiro.
Refiro-me, obviamente, ao juiz da partida entre o Guga e o tenista dos EUA, Chris Woodruff, pela final do torneio de Montreal. Cometeu uma série de erros graves. Não exerceu a prerrogativa do "overrule", isto é, não corrigiu, como é usual, os diversos erros dos árbitros de linha (os bandeirinhas do tênis) contra o Guga. Com isso, praticamente decidiu o jogo. Na ânsia de parecer imparcial, acabou com as chances do tenista brasileiro.
Ao saber da nacionalidade do juiz, logo fiquei apreensivo. Quando está no exterior, o brasileiro tem, em geral, medo, pânico de mostrar-se brasileiro. Manifesta, com frequência, uma ânsia abjeta de parecer neutro, "internacional", "cidadão do mundo" etc. Na própria terra, cercado de Brasil por todos os lados, o brasileiro tem caráter e temperamentos próprios, bem marcados até. Mas, sozinho no exterior, o brasileiro é um pobre e indefeso ser.
Os povos mais desenvolvidos nunca são assim. O inglês, por exemplo. Como dizia Nélson Rodrigues (outra vez essa figura fatal!), quando chega à Lua, a primeira providência do inglês é anexá-la ao Império Britânico. O brasileiro, ao contrário, desembarca no exterior e declara-se imediatamente colônia.
Abro aqui um pequeno parêntese. Vocês vão dizer que estou me repetindo muito. É verdade. Mas como dizia Machado de Assis (enfim uma variação!), há coisas que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição.
E depois tem o seguinte: o próprio leitor aprecia e até pede a repetição. Se passo muito tempo sem citar o Nélson Rodrigues ou sem atacar o nosso subdesenvolvimento, o leitor estranha e reclama.
Fecho, então, o parêntese e volto ao tema. Considerem a trajetória do atual ministro da Fazenda. Até o início dos anos 80, Pedro Malan era um dos principais economistas da oposição ao regime militar. Destacava-se como crítico competente e insistente na política de endividamento externo dos anos 70.
Aí veio a mudança fatal. Transplantou-se para os Estados Unidos e iniciou longa e fulgurante carreira em organismos internacionais, como o Banco Mundial e outros. Infelizmente, o brasileiro não viaja bem. Ao longo dos anos, fui acompanhando, desalentado, a sua transfiguração. Quando voltou ao Brasil, no início dos anos 90, era outro. Mandamos para o exterior um economista independente e devolveram-nos um burocrata internacional de alto nível, com ares de funcionário do Tesouro britânico lotado na Índia, sempre ansioso por "home leave".
Mas aí é que está o erro lamentável. O Nélson Rodrigues costumava dizer, com toda a razão, que o inglês, tal como o imaginamos, não existe, nunca existiu. Nem na própria Inglaterra há ingleses. A única vez em que apareceu por lá um inglês, miraculosamente, foi justamente quando Pedro Malan viajou a Londres para negociar a dívida externa. E era um sucesso quando ele passava, ele, o único inglês da vida real. Num coquetel, chegou a ser consultado sobre as regras do críquete.
Como presidente do Banco Central e, depois, ministro da Fazenda, Malan comportou-se da mesma forma que o juiz de domingo: não usou da prerrogativa do "overrule", omitindo-se diante dos erros gritantes dos seus "bandeirinhas". E agora, para completar o quadro, promove um deles a juiz.
Vocês vão me dizer que estou de má vontade e que todo país precisa de burocratas internacionais. Sem dúvida, sem dúvida. Mas nem todos os países confiam o Ministério da Fazenda e o Banco Central a esses funcionários.
O endividamento dos anos 70, tão criticado pelo economista Malan, até que apresenta algumas vantagens em comparação com o endividamento patrocinado pelo ministro Malan. Por exemplo: naquela época, a valorização cambial não era tão acentuada. Os governos militares não fizeram as loucuras que fez o Plano Real nesse campo. Outro exemplo: o grosso dos recursos externos absorvidos durante o governo Geisel foi destinado à formação de capacidade produtiva, com ênfase em investimentos ligados à geração de divisas, em especial na indústria de bens de capital e insumos básicos.
Nos anos recentes, a julgar pelos dados disponíveis, o grosso do endividamento externo está financiando a expansão do consumo, e os investimentos que ocorrem estão concentrados em setores que não geram capacidade externa de pagamento.
O ciclo anterior de endividamento terminou em colapso cambial, é verdade, mas só depois que a economia foi atingida por uma onda de choques externos, no contexto de uma crise de proporções internacionais.
Hoje, por muito menos, o Brasil entraria em parafuso. Bastaria uma inflexão mais acentuada da política de juros dos EUA e de outros países desenvolvidos para jogar a economia brasileira no chão.
Em outras palavras, alguns golpes mais envenenados do Greenspan seriam suficientes para pegar a política cambial brasileira no contrapé e quebrar o nosso serviço da dívida. A autonomia nacional na condução da política econômica, já limitada pelas decisões dos últimos anos, acabaria reduzida a pó de saibro.

E-mail: pnbjr@ibm.net

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