São Paulo, quinta-feira, 14 de agosto de 1997
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Ricca enfrenta Hamlet

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

No meio da conversa, dias atrás, Marco Ricca olha meio desconfiado e diz que vai contar algo que vem escondendo, mas que tem assombrado seu Hamlet. Hoje, 14 de agosto, dois dias antes da estréia de "Hamlet", completam-se 30 anos da morte de seu pai.
"Em vez de exorcizar seus fantasmas", diz o novo integrante da casta dos atores do maior personagem do teatro, "você os traz. Tem que cuidar para não pirar". Envergonhado e temeroso, diz que vem usando a memória da morte do pai para compor o papel.
Em 89, foi o que aconteceu com Daniel Day-Lewis, ator premiado com o Oscar por "Meu Pé Esquerdo". Era Hamlet em célebre montagem do National, teatro de prestígio em Londres. Um Hamlet melodramático, atlético.
Uma noite, no meio da apresentação, deixou o palco e jamais voltou. A razão que ganhou lenda -e que ele não nega- foi ter visto, na cena do Fantasma do pai de Hamlet, na cena da "aparição", a imagem de seu próprio pai, o poeta Cecil Day-Lewis, que morreu quando ele tinha 15 anos.
Linhagem
Marco Ricca, que estréia como Hamlet aos 34 anos, e Day-Lewis, que foi aos 31, fazem parte de uma linhagem de atores lembrados pela lenda do personagem.
Linhagem que, no tronco anglo-saxão, abre quatro séculos atrás com Richard Burbage (o primeiro, contemporâneo de Shakespeare) e segue com Edmund Kean, John Barrymore (avô de Drew e para muitos o maior), Sir John Gielgud, Sir Laurence Olivier, Richard Burton, Ralph Fiennes, Kenneth Branagh, este também com o filme que estréia em outubro. Menos lembrados, Mel Gibson e até Keanu Reeves.
No tronco nacional, a genealogia de Hamlet abre com João Caetano, a maior referência de ator no palco brasileiro, que estreou no papel aos 35 anos, em 1843.
Só um século mais tarde surge notícia de novo Hamlet, Sérgio Cardoso, seguido depois por Walmor Chagas, para entrar nos anos 80 com uma série, em versões mais ou menos elaboradas, nem sempre shakespearianas: Ricardo Almeida em 82, Celso Frateschi em 84, Iara Petricovsky em 85, Bete Coelho em 90, Cláudia Abreu em 91 e Marcelo Drummond em 93.
Autodestruição
Walmor Chagas, que estreou no papel aos 40, hoje com 66, não tem lenda para contar, mas ganhou fama de autodestrutivo por Hamlet. Ao ouvir do novo Hamlet, reagiu de pronto: "Pois é... Uma armadilha ele se meteu".
E como você se livrou dela? "Eu não me livrei. Entrei numa crise tão grande, depois do Hamlet... Saí do teatro, fui para Porto Alegre, fiquei dois anos. Aquilo seria o ápice da minha carreira. E foi, mas eu cheguei lá em cima e não peguei. Não consegui fazer. Ganhei prêmio, foi tudo elogiadíssimo. Mas é o meu excesso de autocrítica, que alguns desavisados, como o (crítico) Sábado Magaldi, confundiram com autodestruição."
Três Hamlets
Hamlet por Walmor Chagas:
- É sobre-humano! Tem momentos absolutamente... Às vezes, são paranóicos. Mas cadê a linha psicológica? Tu não achas. É dificílimo de fazer. E eu não engolia o Fantasma. Não dava aquela cena. Fizemos uma coisa interessante, mas foi difícil transpor. Uma recomendação ao Hamlet? Que se alimente e durma, para aguentar. E se chegar a um ponto, ali, de grandeza, sem abranger a obra toda, que se dê por satisfeito.
Hamlet por Celso Frateschi, que estreou aos 31, hoje com 45:
- É um personagem muito forte. Até hoje é minha referência. Eu estava afastado, em teatro de bairro, quando fui chamado. Pensei que ia fazer Fortinbras. Mas era Hamlet, e ninguém passa impune... Nos ensaios, você lê muito, mas volta aos poucos ao texto e vê que o Shakespeare dá as dicas. Não tem teoria tão perfeita.
Por Marcelo Drummond, que estreou aos 30, hoje com 35:
- O Hamlet é personagem de terreiro, tem a mesma função do exu no candomblé. Chega para transformar a podridão da Dinamarca. Mas isso porque o que eu faço é terreiro. E como pode um Hamlet com uma voz dessas?! Para o Hamlet, isso pouco importa. Não é um personagem perfeito, nem uma peça perfeita.
Agir para morrer
O Hamlet de Marco Ricca, que foi um atirado "Paco maluco, o perigoso" em "Dois Perdidos numa Noite Suja", de Plínio Marcos, se anuncia como vingador implacável, amado e odiado. Em momentos, até sanguinário.
As expressões são do próprio ator, que quer um "Hamlet" de sessão da tarde. Popular como Shakespeare, até "pop". Portanto, nada de melancolia, de inação, em Hamlet. Os seus questionamentos são, para Ricca, preparatórios da ação. "Ele tem que agir para viver." Ainda que a ação de Hamlet seja sua própria morte.
No humor, como é próprio de um vingador sanguinário, menos escracho e mais ironia, com "a sutileza do pequeno". Ao menos é o que busca o ator -como todos os anteriores, assustado diante do gigantismo da tarefa.
Marco Ricca, que fez um primeiro contato com Hamlet no Treplev de "A Gaivota", personagem tchecoviano inspirado no shakespeariano, já vem "traumatizado" pela experiência, quando produziu demais, desligando-se da atuação. Volta com gana e tempo para o ator. E alguma loucura.
- Eu sou, por excelência, um ator anárquico. E o Hamlet, já no encontro com os dois amigos, no início, está louco. A sensação que eu tenho, de vez em quando, nos ensaios, é que eu vou... É impossível passar impune.

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