São Paulo, sábado, 16 de agosto de 1997
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Coração de brasileiro

RUBENS RICUPERO

"Morrer vamos todos. A diferença entre mim e os outros é que eu sei que vou morrer e eles não sabem."
Foi assim que reencontrei Betinho, após 30 anos. Um sábado à tarde em Brasília, fim de agosto ou começo de setembro de 1993, assistia a uma entrevista na TV na qual o jornalista lhe perguntou como se sentia, sabendo que ia morrer.
Lembrei-me de como o havia conhecido, em meados de 1963, no apartamento de Paulo de Tarso Santos, deputado do PDC recém-nomeado ministro da Educação do governo Goulart, já em sua fase quase terminal. Acompanhando-se ao violão, Betinho cantava modas de Montes Claros, Curvelo, do norte de Minas, onde nascera. Uma das toadas, de humor soturno, de capiau de Guimarães Rosa, me ficou meio enterrada no subconsciente e voltou à tona quando ouvi sua resposta na TV. Dizia mais ou menos assim: "Tá sentado no pau, de cabeça pra baixo, gavião de penacho".
Na época da implantação do Real, tivemos alguns contatos esporádicos. Uma vez me escreveu para alertar contra o perigo de que o plano, como os anteriores, agravasse ou deixasse na mesma a situação dos esquecidos de sempre. Já então se inquietava com a ausência de uma articulação explícita entre as medidas econômicas e a luta contra a pobreza. Desconfiava da frieza tecnocrática. Temia que se, desde o princípio, não se estabelecesse claramente como a reforma econômica deveria promover a repartição de benefícios, estes seriam de novo escamoteados dos mais pobres.
Líder de sua geração, nos tempos da UNE, dirigente da ação direta contra o regime de 1964, teria sido natural que seguisse, após o fim desse regime, o itinerário de uma carreira política convencional como tantas outras. É característico dele e de sua percepção da inadequação do nosso sistema político que tivesse preferido um caminho original. O método desmobilizador da "conciliação das elites", o jogo habitual dos compromissos "pragmáticos" a que tantos sucumbem em nome do suposto realismo do "mal menor" lhe pareciam indignos e, ao mesmo tempo, ineficazes.
Havia, na raiz de sua atuação, duas opções, nítidas, uma de método, outra de fins. A primeira era em favor da mobilização dos cidadãos por intermédio da TV e da mídia em geral, sem esperar muito da intermediação teórica de instituições representativas comprometidas pelo dinheiro e pelo poder.
A segunda era dar prioridade absoluta e radical ao problema brasileiro por excelência: a monstruosa herança de pobreza, desigualdade e injustiça. De um país embalado comodamente pelo poema de Álvaro de Campos, "depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...", ele exigia que começasse hoje, já, agora!
Tinha pressa, pois sabia que seu tempo era curto. Daí, no fundo, a escolha da mobilização, de preferência ao ciclo mais longo da política tradicional. Daí também a ênfase no imediato, a impaciência com esquemas sequenciais ou de "mão invisível", em que a pobreza só terá vez quando o bolo crescer ou o caldo transbordar da panela.
Superando a crítica marxista da caridade cristã como paliativo, compreendeu junto com Vicente de Paula que, enquanto não se completar a mudança da sociedade, é preciso dar de comer aos famintos e vestir os nus.
Era a quintessência do brasileiro: miúdo, franzino, olhos luminosos, inteligente não como tantos, mas com o dom raro da "sapientia cordis", a sabedoria do coração. Morreu de morte bem brasileira, antes de chegada sua hora, vítima do mesmo descaso e negligência que custa a vida de milhares de pobres de nossa terra. Na vida e na morte, encarnou o destino do seu povo.
A morte, aliás, tenha paciência, está exagerando em sua sanha contra nós. Darcy Ribeiro, Antonio Callado, Paulo Francis e agora Betinho, a todos nos levou em poucas semanas a "indesejada das gentes". Cada um deles representou parcela do que de melhor há em nós, do que aspiraríamos todos fôssemos. Darcy, fundador de museu e universidades, plantador de florestas e bosques de palmeiras; Callado, revelador das lutas agrárias do Nordeste, defensor da liberdade na hora mais perigosa da repressão, recriador da ficção amazônica; Paulo Francis, crítico implacável, excessivo, que tudo demole e tudo compreende, como Gilberto Amado, "um detrator público e adorador secreto do Brasil".
Cada um a seu modo foi um autêntico herói brasileiro. A propósito da morte de Ayrton Senna, escrevi que, muito mais do que na falta de caráter de Macunaíma, o verdadeiro rosto do povo brasileiro se refletia em virtudes encarnadas pelo campeão: tenacidade, espírito de luta, atração do novo, desejo de auto-superação.
De Betinho pode-se dizer o mesmo, de sua paixão pela justiça, de sua inconformidade com a pobreza. E, acima de tudo, das duas principais heranças que nos lega: a fé no povo de cidadãos como força transformadora da sociedade, a compreensão de que a eliminação da pobreza e o combate à desigualdade, aqui e agora, são as bases insubstituíveis da viabilização de qualquer projeto nacional.
Após a morte sucessiva dos grandes gigantes do começo do século, Domício da Gama escreveu: "Machado de Assis, Euclydes da Cunha, Joaquim Nabuco fazem falta ao meu coração de brasileiro confiado no futuro de uma nação que teve dessas inteligências".
Nós também podemos dizer que Betinho e seus companheiros fazem falta ao nosso coração de brasileiros esperançosos de que esses exemplos apressem o advento do que nem eles chegaram nem nós chegaremos a ver: um Brasil justo, sem pobreza, doença e ignorância, com a desigualdade diminuída até onde é possível ao humano esforço.

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