São Paulo, terça-feira, 19 de agosto de 1997
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Queimada da palha da cana e o autoritarismo do governo

MARCELO P. GOULART

Os impactos das queimadas no meio ambiente e na saúde pública são devastadores.
Estudos da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (Universidade de São Paulo) revelaram a relação existente entre a alta concentração de gases tóxicos provocada pelas queimadas e o aumento das doenças respiratórias.
Pesquisa apresentada recentemente no Instituto de Química da Unesp (Universidade Estadual Paulista) demonstra que as queimadas liberam substâncias carcinogênicas e mutagênicas.
Fato que reforça a suspeita levantada pela referida Faculdade de Medicina de que essa prática rural antiambiental é responsável, na região canavieira de Ribeirão Preto, pelo elevado índice de câncer na laringe, na boca e nas glândulas salivares.
Não é demais citar os custos sociais e econômicos dessa degradação ambiental.
O custo da prevenção, por força de lei, é do titular da atividade potencialmente poluidora.
No caso da cultura da cana, esse custo é transferido para a sociedade brasileira.
O contribuinte banca as despesas decorrentes do atendimento, na rede pública, às pessoas portadoras de doenças respiratórias.
Na região canavieira de Ribeirão Preto, por exemplo, o número de casos dessas doenças aumenta em 50% na temporada das queimadas da palha da cana-de-açúcar.
Levantamento feito pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo aponta as doenças respiratórias como a principal causa das internações hospitalares.
A comunidade arca com os prejuízos causados pelo aumento do consumo de água tratada.
O consumo de água se triplica devido à sujeira causada pelas fuligens produzidas pelas queimadas.
Ao atingir as redes de alta tensão, as queimadas provocam a interrupção da transmissão de energia elétrica e prejuízos materiais de grande monta.
Deixando de investir na prevenção do dano ambiental, os produtores de cana maximizam seus lucros, num processo perverso de enriquecimento ilícito.
Ilícito porque se trata de atividade vedada por lei.
Perverso porque se dá ao custo da saúde da população e do dinheiro do contribuinte.
Por tudo isso, o Ministério Público priorizou o combate à queima da palha da cana-de-açúcar e está obtendo sucesso nas demandas judiciais.
Ganhou cerca de 80% dos casos julgados pelo Judiciário de primeira instância.
Nos tribunais, as últimas decisões consagraram as teses do Ministério Público, a demonstrar tendência jurisprudencial favorável à proibição das queimadas.
Insensível a essas questões e preocupado em agradar somente os empresários do setor sucroalcooleiro, o governo do Estado de São Paulo baixou, em 6 de agosto de 1997, o decreto nº 42.056, que regulamenta a queima da palha da cana-de-açúcar.
Ao alardear tal feito, o governo do Estado foi cínico.
Disse que tal decreto proíbe a queimada de cana.
Na verdade, o decreto permite a queimada, contrariando toda a legislação ambiental hierarquicamente superior, como é o caso da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente.
Afirmou que o referido corpo de normas atende aos interesses dos trabalhadores rurais.
Nada mais falso.
O decreto incentiva o corte mecanizado da cana e por conseguinte o desemprego.
Não aponta alternativas para a mão-de-obra descartada pelo processo de mecanização do corte da cana.
O governo também foi desleal e autoritário.
Ao baixar o decreto, interrompeu abruptamente a negociação sobre o fim das queimadas que ocorria no âmbito da Câmara Paulista do Setor Sucroalcooleiro e envolvia trabalhadores, empresários, ambientalistas, Ministério Público e o próprio governo estadual.
Não aguardou o resultado da negociação, demonstrando que, no âmbito daquele fórum, buscava cooptar os diversos segmentos sociais e instituições ali representados, para legitimar o script previamente acertado com os empresários.
Ao perceber a seriedade das propostas apresentadas em conjunto pelo Ministério Público, pelo movimento ambientalista e pelos setores independentes do movimento sindical -que almejavam conciliar os interesses de todos os partícipes da câmara-, apelou e, explicitando seu caráter antidemocrático, baixou o decreto.

Marcelo Pedroso Goulart, 39, é promotor de Justiça de Meio Ambiente em Ribeirão Preto e representa o Ministério Público na Câmara Paulista do Setor Sucroalcooleiro.

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