São Paulo, terça-feira, 19 de agosto de 1997
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O exílio, os amores e a prosa vulcânica de Glauber Rocha

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

"Filosofia, sim, estou lendo. Schopenhauer ('Dores do Mundo'), Nietzsche ('Assim Falava Zaratustra')... Porém, como dizer-te que nunca seguirei o ponto de vista deste ou daquele? Nunca serei 'superior' como Nietzsche, pessimista como Schopenhauer, ou cínico como Voltaire, isto não!".
O trecho acima está na primeira carta de "Cartas ao Mundo", escrita por Glauber Rocha em 1953, aos 13 anos.
Ela já dá uma idéia do que se lerá a seguir no alentado volume de 265 cartas depositadas no Acervo Tempo Glauber, selecionadas e organizadas por Ivana Bentes, num calhamaço de 730 páginas (sem contar os índices) que sai agora pela Companhia das Letras.
Já estão ali a inteligência, a determinação e, sobretudo, a necessidade de discriminar, hierarquizar, classificar, enfim, de encontrar o devido lugar para cada coisa.
O que vem a seguir é um painel invulgar da vida cultural e política brasileira, composto "a quente" entre os anos 50 e 80.
Invulgar, antes de tudo, pela inteligência do protagonista e por sua determinação em pensar o Brasil por vários ângulos (o cinema, a escrita, o poder, a paixão, o sonho, a revolução).
Mas também um painel irônico. Carta após carta, linha após linha, os textos comunicam essa necessidade vital de compreender, discriminar e agir no sentido da transformação do cinema e do país.
Ao mesmo tempo, Glauber Rocha (1939-1981) parece não raro atropelado pela história. Se Cuba torna viável a utopia revolucionária no início dos 60, o regime militar soterra essa esperança em 64.
Se, ao longo da década o cinema novo se impõe mundialmente e Glauber conhece o apogeu de seu prestígio, o fechamento no final da década leva-o ao exílio.
E quando, nos anos 70, a esquerda luta contra os militares, Glauber abre uma dissidência solitária, entende que a idéia de revolução prevalece sobre os conceitos de "esquerda" e "direita" e sustenta a hipótese de a revolução nacional ser produzida pelos próprios militares (sem por isso excluir políticos como Miguel Arraes).
O que menos importa, nesse movimento incessante, é saber quando ele está certo e quando está errado. Como disse o crítico Paulo Emilio Salles Gomes (1916-1977) a seu respeito, o dever do profeta é profetizar, não é acertar.
E a profecia glauberiana é, como ele, como seus filmes, transbordante, barroca, contraditória, autoritária, generosa, idiossincrática. Não raro, tudo isso a um só tempo. Em uma palavra, o que essa correspondência expõe é um Glauber vulcânico, uma máquina de pensar, um homem tumultuado de um tempo idem.
Para Ivana Bentes, 33, professora de Comunicações da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a seleção das cartas obedeceu a três critérios: a expressão do seu pensamento político (o objeto inicial de sua pesquisa, com vistas a uma tese de doutorado); o interesse para a história cultural do Brasil contemporâneo; e o mapeamento da vida do autor.
Talvez o terceiro item seja o mais apaixonante. Pelas cartas, pode-se seguir não apenas o movimento do pensamento de Glauber Rocha, mas sugerir mesmo a idéia de uma autobiografia, capaz de dar conta não só de suas andanças pessoais (filmes, amores, exílio, armações políticas, afetos e desafetos), como de toda a sua geração.
"Quase sempre, o que ficou de fora é a correspondência comercial ou burocrática", diz Bentes.
O volume traz ainda uma rica correspondência passiva, como se diz das cartas recebidas. De Paulo Emilio a José Guilherme Merquior, de Gustavo Dahl a Alfredo Guevara e tantos outros, em várias épocas, desfila em "Cartas" um grupo de coadjuvantes que, como Glauber, oferecem um testemunho irrecusável, pelo que tem de significativo, sobre uma época.
Ivana Bentes julga que "Cartas" pode dar outra medida de Glauber, não mais apenas como cineasta: "A história do Brasil contemporâneo passa por ele".
E vice-versa, já que nessas cartas estão as várias fases da vida (e obra) do cineasta, respondendo aos vários momentos da história brasileira.
Quanto ao Brasil, que não raro desacreditou do Glauber cineasta, poderá agora entrar em contato com um pensamento que, se tem a virtude de "esclarecer" muito do que está em seus filmes, tem também a de compor um retrato por inteiro de uma época, no que teve de grandeza e miséria, sonhos e equívocos, busca e perplexidade, auto-suficiência e deterioração.
Glauber Rocha, até por sua origem ("eu sou um pau-de-arara") e por seu nomadismo, talvez seja o intelectual que melhor expressa as muitas nuanças da segunda metade do século no Brasil (mas não só nele). Não tateava. Ia de cabeça.
Daí, talvez, esse vaivém cheio de tumultos, certezas precárias, frases cortantes, em que se misturam o pensador, o panfletário, o militante ou o xerife -conforme a hora e o humor.

Livro: Cartas ao Mundo
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: 34 (652 págs.)

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