São Paulo, terça-feira, 19 de agosto de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A sinfonia do sem-terra com o sem-mídia

GILBERTO VASCONCELLOS
EU FUI CONTEMPLADO NA FOLHA.

Marcelo Coelho e Otavio Frias Filho escreveram sobre meu livro "O Príncipe da Moeda", cujo objeto é a misteriosa trajetória política de FHC.
Eis o que tocou fundo em Marcelo: os anos de formação na USP. Nossa queridinha Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas pariu o presidente da República.
Marcelo deixa transparecer sua atitude pendular e ambivalente: adere e repudia, num vai-e-vem, as teses políticas e culturais contidas em "O Príncipe da Moeda".
Para se tranquilizar, marcando a diferença existencial em relação a mim, diz ele preferir o "internacional democrático" ao "nacionalismo autoritário".
Aí, não. Discordo. Essa polaridade é falsa. O internacional não é democrático. "Remember" o golpe meia quatro. De modo que o internacional é infinitamente mais plutocrático (dinheiro, dinheiro, dinheiro) do que democrático. São 300 empresas multinacionais que tomam conta do mundo. O resto é papo de urubu com bode.
Destarte, o nacionalismo no Brasil é menos projeto autoritário do que estética revolucionária.
Marcelo Coelho não consegue desvencilhar-se da superficial prosápia feagaceana sobre o binômio democracia e autoritarismo.
Com Otavio me surpreendi, pois seu comentário esdrúxulo é de fundo memorialístico, pensando talvez em Roberto Mangabeira, o prisioneiro apolíneo de Harvard. Eu acho que a metalinguagem de Marcelo pirou, ou fez pirar, a leitura de Otavio, qualificando-me como um produtor de irracionalismo sociológico, espécie de arauto "kulturkrytyque".
"Enfim, uma ideologia", ou seja, até então parece que não havia nada, a não ser a ideologia Cazuza... Segundo a memória meio ficcional de Otavio, o ex-mentor da Libelu dionisíaca teria ficado doidinho ao entrar, um belo dia, há 20 anos (editorialista da Folha), em contacto com Cláudio Abramo e, por acaso objetivo, com o cineasta Glauber Rocha, tornando-se deste último uma espécie de Chico Xavier mediúnico da sociologia uspiana, onde fui aluno do mestre e erudito Ruy Coelho.
Seja lá o que for, idade, paidéia ou vivência, não importa o motivo explícito, os intelectuais e jornalistas de São Paulo não estão familiarizados com o tema do nacionalismo. Acontece todavia o seguinte: o que pega no teatro FHC é a questão nacional. Não é senão por isso que o roteiro da oposição extraparlamentar é o fantasma de Canudos e Contestado.
Fiquei pasmo com o paralelo inusitado, posto em foco por Otavio, entre o discurso de "O Príncipe da Moeda" e a rebelião da terra, associando delírio metafórico com massacre genocida dos desterrados. Coisa de louco anunciar a possível aliança entre o PM dissidente e o favelado das cidades. A burguesia odeia Antônio Conselheiro, o Jesus Cristo brasileiro sem-terra.
Na carreira de FHC, o ano decisivo é 1964. O "niuliberalizmuz" traz a morte do professor, substituído pelo apresentador de TV. A elegia da didática. Educação à distância, bem longe. Pulamos a grafoesfera, conforme advertira Darcy Ribeiro. Cuidado com jornalismo sem "news"!
Delirando com o sequestro cultural da vulva ocorrido em 1964, Darcy Ribeiro "dixit": maior burrice é o preconceito de São Paulo contra o trágico Getúlio Vargas. A Libelu despirocada abominava o tango Jango tanto quanto a velha UDN anal. A má consciência paulista diante do golpe de 1964. A rixa TV versus jornal. A autofagia do linotipo.
Salve quem puder a mídia escrita. O importante é comprar jornal para lê-lo, quase uma paixão clandestina, que nem o nacionalismo dos indignados, porque leitura é luxo. Povão ágrafo. Virgem de escola, sem hospital e sem manicômio. Daí resulta a palavra de ordem surreal e verdadeira: cada brizolão que se abre é uma prisão que se fecha.
O impasse do artigo em pânico de Marcelo Coelho é a passagem do capital industrial para a "videocracia financeira". "Hot money". Capital motel. Dólar gafanhoto. Somos a vanguarda do capitalismo videofinanceiro. A televisão não atrapalhou apenas a vida do militante marxista. A substituição formal do jornal à TV converte a leitura em algo dispensável: o jornal mais para ser visto do que para ser lido.
Otavio acredita que o povo é culpado por não se revoltar contra a pauperização do pobre, mas ele descarta a perspectiva do nacionalismo como raiz do futuro da imprensa e do país.
Nacionalismo é irracionalismo. Segundo ele, meu livro denuncia o colapso da desnacionalização do Brasil por São Paulo mameluco e subimperialista. Não é à toa a antipatia sectária do PT e do PSDB em relação à história do Brasil antes de 1964.
Os primeiros suportes midiáticos na carreira de FHC foram os professores e os estudantes. Quem é que se lembra hoje de um pensamento sociológico bolado pelo Príncipe? Segundo Luís da Câmara Cascudo, a notoriedade é impossível de ser explicada. Conde d'Eu jamais será popular entre nós.
Apesar das farpas e divergências na interpretação, Marcelo e Otavio são admiradores do meu opúsculo panfletário. Não importa se por acaso, conforme observou-me Alberto Lira, eles não estivessem de início a fim de gostar do livro; porém, no decurso da leitura, mudaram de gosto, de opinião e desbundaram.
A ruptura com a posição antinacionalista, típica da grande imprensa brasileira, está ainda para acontecer em algum dia jubiloso, mas não é impossível que aconteça agora na era feagaceana da total desnacionalização do país. Caso contrário, a imprensa escrita será tragada pela televisão, a qual sempre apóia quem vence na luta pelo poder. De Castelo ao doutor Enéas.

Gilberto Felisberto Vasconcellos, 48, professor adjunto de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), é autor de "O Príncipe da Moeda" (Espaço e Tempo, 1997).

Texto Anterior: CPI: um relatório anunciado
Próximo Texto: Esclarecimento; Decisão polêmica; Acre; Desarmamento; Palavrões em campo; Homenagem estranha; Esterilização; Consistência
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.