São Paulo, sábado, 23 de agosto de 1997 |
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Os misteriosos mundos do Dr. Oliver Sacks
MIRIAM CHNAIDERMAN
Depois, começa a pensar se tamanho bem-estar não seria uma doença. Relata então ao Dr. Oliver Sacks, seu interlocutor, ter trabalhado em um bordel há 70 anos e ter contraído sífilis. Foi seu marido que tratou de sua doença, quando ainda não existia penicilina. Ela pensa que talvez "a doença a tenha pego depois de todos esses anos". O médico se surpreende, mas pensa que talvez ela esteja certa. E, de fato, o liquido espinhal era positivo. Surge então um dilema. Embora soubesse estar doente, sua paciente não queria se tratar: "Sei que é uma doença, mas faz com que eu me sinta bem". Algo se inverte -a doença pode ser bem-estar e a normalidade, mal-estar. Essa é uma das histórias do livro, agora reeditado, "O Homem Que Confundiu sua Mulher com um Chapéu". Sacks sempre se interessou pelo potencial "criativo" da doença. O que não quer dizer que seja um "Poliana" da medicina. Muitos de seus relatos são amargos e falam da sua impotência. Seu último livro, "A Ilha dos Daltônicos", que é lançado agora, junto com a reedição de "O Homem", é um relato da viagem que fez à ilha Pingelap, na Micronésia, como neuroantropólogo -um pesquisador das reações de uma comunidade a condições endêmicas incomuns. Desde a infância, Sacks ouvira histórias de navios e navegantes. Também suas enxaquecas de infância o levaram a procurar a "ilha dos daltônicos". Quando soube da existência de uma forma rara de daltonismo, a acromatopsia congênita -impossibilidade de ver cores em geral-, indagou-se se existiria "um vale dos daltônicos". Em 1993, ficou sabendo de Pingelap. Um tufão, em 1775, destruiu 90% de sua população. Restaram pouco mais de 20 sobreviventes, que procriaram entre si, o que explica porque uma característica genética rara como o daltonismo começou a se difundir. Sacks empreende a viagem fantástica em busca de uma cultura daltônica, na qual o sensório e a imaginação passam a ter formas diferentes das que conhecemos. Neurologia do "eu" Com Sacks surge uma nova disciplina, a neurologia da identidade, que lida com as bases neurais do eu, na busca da relação dos processos fisiológicos com a biografia. Para ele, é preciso ousar e saber que talvez a singularidade de cada quadro neurológico leve a uma ciência "personalista" ou "romântica", "que busque as bases físicas da persona, do eu". Questiona como a medicina vem lidando com o sofrimento humano, esquecendo que o que está em jogo é o sujeito. Os casos passam a fazer parte de estatísticas nas quais parece ser indiferente a história de cada um. Para Sacks, saber do sujeito é buscar a narrativa singular que o caracteriza. Cada um de nós tem uma biografia. O que nos singulariza é a narrativa, no nível biológico e fisiológico não somos muito diferentes uns dos outros. Aqui surge uma contradição em Oliver Sacks: acredita em uma neurologia da identidade e, ao mesmo tempo, afirma a irredutibilidade do humano ao fisiológico. Freud -citado inúmeras vezes por Sacks- acreditava que um dia poderíamos saber dos mecanismos fisiológicos subjacentes aos processos psíquicos. Acentuava, contudo, que o sentido que o homem atribui ao que vê é algo que nunca poderá ser explicado apenas pela neurologia. Os livros de Sacks, depoimentos do esforço do médico que constitui o sujeito no contato com o atroz dos estragos neurológicos, são o melhor exemplo de narrativas constituindo singularidades. E, certamente, é a possibilidade da narrativa que permite o embrenhar-se de Sacks por mundos tão bizarros. Livros: "A Ilha dos Daltônicos" e "O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu" Lançamentos: Companhia das Letras Quanto: "A Ilha", R$ 26 (284 págs.); "O Homem", R$ 25 (284 págs.) Texto Anterior: CD-ROM compila colônia Próximo Texto: Feira 'apela' para promoções e descontos Índice |
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