São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997
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A ferida perene

JACQUES RANCIÈRE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Como abordar, hoje, a "Dialética do Esclarecimento"? O seu brilho parece duplamente empalidecido: primeiro, como o de uma estrela da constelação irremediavelmente afastada no passado que se chamava marxismo; segundo, pelo contrário, como o protótipo, utilizado por suas cópias, desse discurso duplo sob o regime banalizado do qual vivemos: a crítica do totalitarismo da razão do Esclarecimento, que elege como o seu ponto de honra intelectual a ordem do governo liberal, e a crítica da indústria cultural, que nutre veleidades vagamente contestadoras da opinião intelectual.
E, não há dúvida, essa interminável distinção contém o traço do conflito das filosofias da história, no seio do qual se desenvolveram a teoria e política marxistas. O credo emancipatório do Esclarecimento talvez jamais tenha existido senão nos escritos de Condorcet e de alguns outros. E a identificação marxista entre uma teoria científica e uma prática de emancipação logo se deparou com uma dupla negação. De um lado, o pessimismo de Schopenhauer ou as teorias da decadência rebatiam a afirmação progressista e incriminavam um pecado ou uma ilusão original da pretensão racionalista ao domínio do mundo e à libertação do homem. De outro, o cientificismo de Spencer, Renan e tantos outros vinculava a filosofia evolucionista ao tema da seleção dos melhores e do governo dos mais cultos sobre as massas, votadas à servidão. A crítica de Nietzsche à civilização situa-se no exato cruzamento dessas duas tradições. E ela mantém, por isso mesmo, uma relação complexa com a crítica marxista das ideologias: ela só beneficia os efeitos na medida em que arruína os princípios. E sente-se a consequência disso na argumentação da 'Dialética do Esclarecimento'. O que o livro propõe é uma nova versão do pecado original da razão grega de acordo com Nietzsche.
O erro de Sócrates, ao repudiar a sabedoria trágica, tornou-se o de Ulisses, ao resistir ao canto das sereias. Mas o pecado é o mesmo: reside no orgulho apolíneo do conhecimento, que quer esquecer a parte dionisíaca, a parte de sombra que a une ao mundo mítico e às forças obscuras da vida.
Sem dúvida, Adorno e Horkheimer vinculam o tema desse erro original à crítica da dominação social: seu Ulisses não se previne somente contra o canto dionisíaco das sereias. Ao tampar os ouvidos de seus marinheiros, ao obrigá-los a servir à sua própria "renúncia ao prazer", ele identifica o sucesso da empreitada racional comum à lei capitalista da dominação. Assim, ele se opõe estritamente ao Sócrates "plebeu" de Nietzsche. Mas tal diferença se dá sobre o fundo de um pressuposto comum: o de um grande destino histórico da razão ocidental, concebido como a realização de um erro primeiro.
Nisso, a crítica de ambos à razão capitalista ou à indústria cultural aparece bem mais próxima do que desejaria a outra grande versão da cena primitiva nietzschiana, produzida pelo filósofo que Adorno cobre de sarcasmo: ela aparece como a réplica da esquerda à crítica heideggeriana da metafísica ocidental e de sua realização como domínio técnico do mundo. Existe, em suma, uma dialética da dialética da razão. Esta quer concluir a interminável tarefa da crítica marxista: cortar, finalmente, o cordão umbilical que liga as promessas de emancipação revolucionária às ameaças da razão esclarecida. À razão pervertida, instrumental e mediatizante da dominação, ela busca opor uma razão autêntica -uma relação de intimidade da razão e do mundo da experiência, que se transforma em poder de emancipação. Mas essa ruptura a devolve a uma outra crítica do Esclarecimento: a que converte a história da razão ocidental e sua promessa de emancipação no desenvolvimento irreversível de uma ilusão primeira.
Esta "dialética dentro da dialética" funda a versão melancólica da crítica marxista. Porém ela lhe empresta também um destino ambíguo. A sua crítica da indústria cultural foi sucedida pela crítica situacionista do "espetáculo", outro grande discurso melancólico sobre a uniformização mercantil do mundo. Uma e outra banalizaram-se nesse discurso de "desmistificadores", que, por acompanhar tão bem cada manifestação da indústria cultural ou da "sociedade do espetáculo", tornou-se o seu reverso obrigatório, o discurso dos "astutos" de que a "bêtise" dessa indústria tem necessidade para se perpetuar.
Essa dialética ingressa no estranho destino do que se pode chamar pós-marxismo. Declarado morto com a ruína do sistema soviético, o marxismo, ao mesmo tempo, achou-se livre para toda sorte de usos póstumos. De um lado, o marxismo oficial é chamado em ajuda aos políticos neoliberais, aos quais ele empresta a teoria da necessidade econômica e do sentido inelutável das transformações históricas. De outro, o marxismo crítico empresta sua visão desencantada às contestações da mercadoria cultural que acompanham o seu desenvolvimento e, assim, fornece os discursos de reação, que opõem a autenticidade da arte a seu compromisso com os cálculos estatais e mercantis da cultura.
E, é claro, a "Dialética do Esclarecimento" já denuncia uma tal utilização de sua crítica. Ela mostra que a arte ou cultura autênticas, que se pretendem fazer valer contra a indústria cultural, remontam ao mesmo princípio que ela. A divisão entre a arte nobre e a cultura industrial procede da divisão originária que simboliza o gesto de Ulisses. Quando renuncia ao prazer prometido pelo canto das sereias, ele se reserva o privilégio de ouvir o canto de promessa e perigo, de cujo prazer proibiu os seus marinheiros. A barbárie civilizada é suspendida com esta exclusão originária. E se pode sentir aqui o motivo profundo que separa Adorno e Horkheimer da frivolidade dos chorões que se compadecem periodicamente com a ruína da arte no comércio e na política culturais.
Esse motivo profundo remonta além da crítica marxista do fetichismo e da denúncia do Esclarecimento "burguês". Por intermédio da poesia de Hõlderlin, ele remonta ao que é, sem dúvida, o verdadeiro texto fundador do pensamento moderno da emancipação, as "Cartas sobre a Educação Estética do Homem", de Schiller. À divisão social estabelecida entre a barbárie da civilização dos Grandes e a selvageria popular, Schiller opunha esse apelo de humanidade comum, de reconciliação sensível que constituía a beleza. A força de resistência da "Dialética do Esclarecimento", esta força que separa a sua denúncia de todas as banalizações contemporâneas, reside em sua recusa de ceder a esta promessa estética fundamental, a este horizonte de uma humanidade sensível comum. Reside também na própria radicalização do tema da promessa.
Os românticos, leitores de Schiller, haviam feito da bela totalidade da arte a prefiguração da comunidade livre. Para Adorno e Horkheimer, ao contrário, a arte só perpetua a promessa ao preço de iludi-la, de nela inscrever a ferida perene, a contradição irresolvida de toda transfiguração da realidade em bela aparência estética. É esta radicalidade que confere sua força de cólera à denúncia da banalidade cultural. O problema não é que esta banalidade rebaixe a arte ao nível das "massas". O problema é que ela é uma máquina para satisfazer todas as necessidades, inclusive as necessidades "elevadas" -máquina esta que retira da arte a sua força de ilusão, e, portanto, o seu potencial de emancipação.
Esta pequena diferença é essencial. Vemos, ao mesmo tempo, o que a torna frágil. Não é que o marxismo de Adorno e de Horkheimer seja muito tingido de utopismo. Falta-lhe, de fato, a mesma coisa de que carecem os marxismos "realistas": um pensamento político da emancipação.

Tradução de José Marcos Macedo.

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