São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997
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Um dândi vai às trincheiras

SAMUEL TITAN JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Conhecido por secundaristas resmungões como autor de "Inocência", o Visconde de Taunay (1843-1899) foi um daqueles seres curiosos que só o romantismo tropical soube produzir: militar, desenhista amador, deputado conservador, presidente de província, romancista, propagandista da imigração européia, dândi e, no fim da vida, defensor da ilustre casa de Bragança. Neto de membros da missão artística francesa de 1816, cresceu num ambiente de romantismo francófilo e bem de vida. Teria ficado pela reedição carioca de entrechos à Dumas, não fosse a eclosão, em 1865, da Guerra do Paraguai e a mobilização dos alunos da Escola Militar, entre eles nosso então segundo-tenente.
Fruto da experiência bélica foi esta "Retirada da Laguna", agora reeditada em caprichada tradução de Sérgio Medeiros (o original de 1873 foi redigido diretamente em francês). Dono de estilo notavelmente lhano, que o salva das batatadas mais crassas da prosa do período, Taunay relata, neste livro, a malfadada expedição brasileira ao norte do Paraguai.
Lançada como manobra de diversão, a fim de obrigar o inimigo a deslocar tropas da frente sul, onde se prolongavam as batalhas por Curupaiti e Humaitá, a força brasileira logo sucumbe ao próprio despreparo. Dois anos se passam antes que chegue à frente de combate, quando já vai desfalcada de um terço do contingente. O que se dá a partir de então, nos termos do prefácio de Taunay, é o embate entre a "fortuna", na forma do inimigo e da adversidade do meio, e a "constância inabalável" do bom militar.
Está assim traçado o eixo que dá forma ao relato e impede a proliferação de minúcias de caserna sobre a alça de mira dos fuzis inimigos ou sobre a têmpera dos canhões de tal ou qual fundição. O foco de Taunay recai, então, forçosamente, sobre os momentos graves de deliberação e decisão. E o relato só faz ganhar interesse quando emperra a peça-chave da situação: mais que do inimigo, o mal vem de dentro, de cima, do chefe maior -o pobre coronel Camisão.
Oscilando entre a exaltação e o desalento, o comandante assemelha-se àqueles altos personagens de tragédia que se vêem subitamente convertidos na praga da sua cidade ou estirpe. Sem prejuízo, ao menos para o leitor moderno, do aspecto cômico: é impagável a cena em que, em pleno Mato Grosso, o coronel faz desfilar a banda militar para despertar seus próprios fumos marciais. Fica também por conta de sua indecisão a melhor passagem do livro, o conselho de guerra do capítulo quarto: à falta de pulso, uma sucessão de arroubos e coincidências aparentemente felizes sela a sorte da expedição.
Dito isto, vale notar que o esquema de Taunay, se lhe confere um fio narrativo confiável, não deixa de representar um ônus sobre o interesse contemporâneo da sua prosa. Antonio Candido já falou do "realismo mitigado" do Visconde; pois bem, o leitor moderno da "Retirada" adivinha, quase que a cada página, a multidão de aspectos cômicos, patéticos ou cruéis que a perspectiva do narrador deixa de lado: soldados descalços em meio ao capim cortante, esposas e prostitutas acompanhando a coluna, escravos e pés-rapados em uniformes molambentos e assim (suponho) por diante.
Nem mesmo a eclosão do cólera faz Taunay ultrapassar certo decoro de estilo: o momento mais patético é também aquele em que mais proliferam as fórmulas retóricas mais gastas. Fica a impressão de que, para o nosso jovem dândi, a trágica retirada não deixou de ser também uma esplêndida aventura juvenil, um penhor de bravura destinado a fazer sucesso nos salões da corte (cf. págs. 302-306). E aquelas frases sobre a solidão do homem diante da natureza majestosa e indiferente fazem pensar em Euclides da Cunha, mas quantos corações femininos não terão palpitado com elas, quantos leques não foram agitados mais freneticamente?

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