São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997
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Baile de canhões

Leia trechos das memórias do autor de "A retirada da Laguna"

SÉRGIO MEDEIROS
ESPECIAL PARA FOLHA

A carreira militar de Alfredo d'Escragnolle-Taunay foi pontuada, desde o início, por atos de rebeldia. Ao assentar praça no exército, em 1861, recusou-se, por exemplo, a cortar os cabelos à escovinha, como lhe solicitara um capitão. O caso foi parar nas mãos de um brigadeiro temperamental, que, examinando os madeixas do futuro autor de "A Retirada da Laguna", exclamou: "Deixem em paz os cabelos do rapaz. Não vê que são bonitos?". O incidente se encerrou ali, e Taunay pôde cultivar, na caserna, a sua imagem de "mocinho bonito e interessante", conforme ele revela nas suas "Memórias". A sua condição de militar jamais o impediu de continuar sendo um homem extremamente elegante e vaidoso, mesmo nos desconhecidos sertões de Mato Grosso, onde enfrentou os soldados paraguaios na guerra da Tríplice Aliança (1864-1870).
Se, por um lado, Taunay era um militar rebelde, por outro, ele também sabia agir com diplomacia, evitando entrar em choque direto com seus superiores, de maneira a não prejudicar sua carreira no exército. Na opinião do romancista e historiador Jean Soublin, que assina o prefácio da última edição francesa de "A Retirada da Laguna" (1995), foi a "prudência" que levou o jovem oficial Taunay, então com 25 anos, a redigir essa obra, em 1868, não em vernáculo, mas na língua dos seus antepassados: o livro poderia desagradar aos militares, e por duas razões. A primeira, porque descreve a derrota de uma coluna expedicionária, embora enfatizando, tanto quanto possível, o heroísmo dos soldados brasileiros; a segunda, porque revela sem meias-tintas as deficiências do coronel Camisão, comandante-chefe da expedição, estrategista medíocre que, para limpar sua honra militar (fora chamado de covarde por seus desafetos), decidiu invadir o norte do Paraguai, a partir do rio Apa, divisa dos dois países, embora não dispusesse de homens e de armas para fazê-lo.
Essa prudência talvez explique também por que Taunay preferiu calar sobre os curiosíssimos incidentes (aliás, nada honrosos para o exército brasileiro) que antecederam a viagem da coluna pelo sertão, a partir de Campinas (SP). Felizmente, Taunay era um grande memorialista e pôde, anos mais tarde, reproduzir em detalhes os movimentos iniciais da coluna expedicionária para suas saborosas e surpreendentes "Memórias", obra póstuma. Concluída a redação desta, em português, o escritor guardou os manuscritos no cofre de sigilo do Instituto Histórico e Geográfico, com a seguinte declaração: "Estas 'Memórias' só podem, só devem ser entregues à publicidade depois de 22 de fevereiro de 1943, isto é, completos cem anos da época do meu nascimento, ou cinquenta anos de 1893, data em que as hei de depor em lugar seguro". Por isso, somente em 1948 a obra foi finalmente publicada pelo Instituto Progresso Editorial de São Paulo.
A leitura de "A Retirada da Laguna" sai enriquecida quando consultamos também as "Memórias" do escritor, razão por que trechos desta última obra foram incluídos na tradução mais recente da primeira, publicada em maio pela Companhia das Letras, na coleção "Retratos do Brasil". Sabendo que nada tinha a temer, mesmo porque já havia há muito pedido demissão do serviço do exército, Taunay faz, nas "Memórias", uma apresentação bem pouco lisonjeira de seus superiores. Sobre o primeiro comandante da expedição de Mato Grosso, o irresoluto coronel Ligo, escolhido pessoalmente pelo Imperador Pedro 2º, conta, por exemplo, que ele era amante de ópera e mostrava-se "insaciável de ouvir este e mais aquele pedaço do repertório italiano, (...), cujas árias indicava com vozinha muito desafinada e fanhosa". Incapaz de conduzir os soldados para o campo de batalha, Drage parecia ter-se esquecido da guerra: vivia rodeado pelas senhoras da alta sociedade campineira, às quais desenhava vestidos de baile, vangloriando-se disso diante dos oficiais da expedição. Estes, por sua vez, procuravam aproveitar ao máximo aqueles belos dias, frequentando bailes, festas, banquetes, como se a guerra já tivesse acabado e eles não precisassem mais pôr os pés no sertão. Entre um jantar e um baile, Taunay descobriu que sua beleza física e seu encanto pessoal eram capazes de inflamar os dois sexos, deliciando-se, como ele deixa entender nas "Memórias", com essa revelação.
Quando os jornais do Rio denunciaram a estada escandalosa da expedição em Campinas, o comandante-chefe ordenou a partida precipitada para Mato Grosso. Taunay perdeu o cavalo e teve de ir de burro, porém não estava tranquilo: o animal volta e meia o atirava ao chão. Mas, sentado no burro ou de pernas para o ar, Taynay não perdia a elegância: "noblesse oblige", ele afirma nas "Memórias", em que também dizia que antipatizava com o herdeiro do trono, o Conde d'Eu, alegando que este era um príncipe "inelegante": homem desajeitado e desengonçado, usava roupas amassadas e botas sujas, não sabia dançar nem tocar piano e, ainda por cima, trazia os cabelos despenteados. Tal desleixo não se admite num soldado, quanto mais naquele que, no último ano da guerra, tornou-se o comandante das forças brasileiras em operação na República do Paraguai. Embora critique nas "Memórias" a falta de encantos do príncipe, Taunay acompanhou-o até Assunção, com a incumbência de redigir o "Diário do Exército". Era muito mais hábil manejando a pena do que a espada: antes de uma batalha, deu-se conta de que havia esquecido a arma numa árvore e voltou a galope para apanhá-la. Topou, porém, com um soldado paraguaio, que descansava no local. Sem perder o sangue-frio, Taunay lhe solicitou, com o aplomb de um dândi do Império falando a uma classe subalterna: "Amigo, me dê 'Usted' aquilo". O soldado executou a ordem com um sorriso amável. "Muchas gracias!", agradeceu Taunay, dando as costas ao inimigo com toda a serenidade, conforme ele conta nas "Memórias".

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