São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997
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Mueller, revelação alemã, está na cidade

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Matthias Mueller é uma das principais revelações do combalido cinema alemão da última década. O 8º Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo, em parceria com o Instituto Goethe, o traz pela primeira vez ao Brasil como o autor homenageado do evento.
O programa Matthias Mueller estréia hoje às 22h no MIS, sendo reprisado na próxima quarta às 19h no Espaço Unibanco. São Paulo é apenas sua primeira parada. Mueller acompanha o ciclo na extensão carioca do festival, levando-o em seguida para Brasília, Curitiba e Porto Alegre.
Nascido em 1961 e desde 1980 dedicado ao cinema, Mueller ocupa posição de destaque dentro da produção experimental com acento homoerótico.
Seus curtas ganharam prêmios mundo afora, passaram por festivais como Cannes, Berlim e Nova York e já mereceram retrospectiva no MoMA (Museum of Modern Art) de Nova York, em 1994.
Fragmentários, cinefílicos e oníricos, seus curtas dialogam intensamente entre si. O conjunto exibe rara coesão, cada filme representando como que um capítulo tenso e particular de um livro ainda em processo de escrita.
"O Livro de Memórias", o primeiro curta da mostra mas não o inaugural de sua filmografia, funciona como uma súmula de tudo que veio a seguir.
Como numa espécie de diário audiovisual, o próprio cineasta se posiciona defronte a câmera, ancorando fisicamente uma cascata de temas que acompanharão toda sua obra: a indissociabilidade entre sexo e morte, a releitura gay do arsenal hollywoodiano clássico, a crítica feminista do papel reservado à mulher na família burguesa, a água como essencial elemento purificador.
O cineasta concedeu à Folha a seguinte entrevista exclusiva, realizada por escrito e complementada num encontro na noite da última quinta-feira.
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Folha - Você concorda que "O Livro de Memórias" já traz os temas essenciais de sua obra?
Matthias Mueller - "O Livro de Memórias" marca, em minha obra até aqui, uma transição entre um cinema mais formalista e uma produção muito mais pessoal. Ainda o considero meu filme mais íntimo, uma espécie de auto-retrato cinematográfico. Ele surgiu a partir do choque da morte de um ex-amante meu em consequência da Aids e cumpriu uma função quase terapêutica para mim.
Obviamente há uma série de temas nessa obra que reapareceram e foram modificados por mim nos filmes seguintes: a relação entre Eros e Thanatos, as ambivalência da água e dos fluídos corpóreos, a condensação das emoções em um tipo de filme inspirado pelo psicodrama, o uso de narração como em diários etc. Acho que imitações e repetições são forças poderosas na vida.
Folha - Você reconhece alguma semelhança entre seus filmes e os do britânico Terence Davies ("O Fim do Longo Dia")?
Mueller - De fato, "Alpsee" foi comparado aos filmes de Davies por um crítico alemão. "Alpsee" tenta expressar uma memória pessoal de uma maneira extremamente estilizada.
É sobre vigilância e eu queria que essa intensidade e esse controle aparecessem em imagens que fizessem alusão a certo tipos de ritual ou de performances teatrais. Nisso a comparação com Terence Davies faz sentido para mim.
Mas quanto ao esquema cromático, "Alpsee" inspirou-se nas cores quentes dos comerciais dos anos 60, enquanto os filmes de Davies me lembram pálidas fotos de família.
Folha - Você teve problema com os direitos autorais dos trechos envolvendo estrelas em filmes hollywoodianos de "Home Stories" (Histórias Lá de Casa)?
Mueller - "Home Stories" foi inspirado por clássicos de "descobertas de arquivo", como "Rose Hobart", de Joseph Cornell, mas há muito mais ironia e sarcasmo em meu filme do que no carinhoso e obsessivo poema dedicado por Cornell para as atrizes prediletas dele. Eu estava mais interessado nos mecanismos do melodrama. Felizmente temos na Alemanha uma legislação muito liberal quanto ao uso de citações e também fortes direitos de expressão artística. Isso explica porque os direitos não tiveram que ser liberados e pude exibir o filme mundo afora, até nos EUA, e mesmo vendê-lo para TVs, sem qualquer problema.
Folha - Você conhece algo da produção brasileira de curtas?
Mueller - Para mim, o mais impressionante curta brasileiro ainda é "Ilha das Flores", de Jorge Furtado. O filme prova que a agitação política não precisa ser necessariamente previsível, superficial e simplificadora. É didático sem ser seco, devido a sua verdade e sinceridade. É a um só tempo um filme de raiva e de inteligência.

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