São Paulo, sexta-feira, 29 de agosto de 1997
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Colunista já foi Shirley Temple por um dia

BARBARA GANCIA
COLUNISTA DA FOLHA

Nem bicho-papão, nem mula-sem-cabeça, nem a Cuca que vem pegar. Nos anos 60 as crianças paulistanas morriam de medo era do "Bandido da Luz Vermelha".
Trauma número 1: esse pobre canalha que o Brasil teima em endeusar acabou com a minha farra. Por sua culpa tive de colocar um ponto final nos passeios de bicicleta no parque Ibirapuera.
Trauma número 2: no auge da fama, quando já era o terror das classes média e alta e o sex symbol das empregadas dos Jardins, o ex-Luz Vermelha e atual "Luz Divina" matou a tiros no meio da noite um meu vizinho. Por conta, passei anos dormindo de luz vermelha, digo, acesa.
Trauma número 3: outro dia, depois de ver pela enésima vez na TV essa nossa celebridade ressuscitada soltando frases de entupir os ouvidos de esterco, me lembrei de um outro dano que, indiretamente, o Bandido da Luz Vermelha me causou.
Quando menina, por acaso, tive a infelicidade de participar como figurante do filme "O Bandido da Luz Vermelha", de Rogério Sganzerla.
Olhando para trás, vejo que essa participação detonou um trauma que carrego até hoje: o bode do cinema nacional.
Eu explico: estava na casa de amigos, na rua Nicarágua, quando o set de filmagem chegou e foi se instalando na calçada. A intenção era filmar uma cena simples: um sujeito baleado, que corria para a rua gritando por socorro. É aí que eu entro. Alguém da equipe do Sganzerla juntou os curiosos que assistiam à movimentação toda e disse: "Você, você e você. Assim que ele cair, vocês correm para ajudá-lo". Um desses vocês era eu.
Pois bem: a tal cena simples só foi ser filmada de madrugada, depois de um zilhão de tentativas. Isso é comum no cinema, dirá o leitor que admira a sétima arte. Tudo bem, mas, no derradeiro take, aquele em que o diretor diz "corta, essa valeu", todos os figurantes chegaram no baleado ao mesmo tempo e, quando alguém do set berrou alguma coisa do tipo "Abaixa pra ver o que ele tem", todos se abaixaram juntos. Parecia coreografia ensaiada. Não sei se a cena está no filme, na época não tinha idade para vê-lo. E, quando lembro do sangue na camisa do baleado, com textura de gazpacho e cor de molho golf, até hoje não tenho a menor vontade de conferir meu minuto Shirley Temple.

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