São Paulo, sexta-feira, 29 de agosto de 1997
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'Luz' é uma lenda do passado

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

O crime é o que nos revela, dizia Fritz Lang. É aquele momento em que o homem decide passar os limites, romper a lei, assumir seu destino. Não tem um interesse apenas pessoal ou jurídico.
Cada criminoso revela o mundo em que vive. Nesse sentido, a libertação do Bandido da Luz Vermelha é um ato de justiça elementar, pelo tanto que ele nos ensinou, ao inspirar o filme de Rogério Sganzerla, "O Bandido da Luz Vermelha", que reestréia hoje.
Não importa que essa obra-prima seja fartamente ficcional, e não biográfica. Ao contrário: Sganzerla pôs na boca do seu bandido aquilo que ele talvez nunca tenha formulado, mas certamente pensou. O enunciado central de seu discurso era: "Quem não pode fazer anda, avacalha". Basta ele para saber que o Luz não é o diabólico dr. Mabuse de Fritz Lang, nem, como Roy "Mad Dog" Earle, de "High Sierra", um predestinado ao crime.
A frase também ajuda a lhe conferir um lugar especial na galeria dos grandes bandidos nacionais, como Lampião ou Tião Medonho. O Luz é tão criminoso quanto madame Bovary foi adúltera. Ou seja: é claro que é (ou foi), mas observá-lo por esse prisma equivale a não ver nada.
Lampião foi um bandoleiro do Brasil rural, enturmado, uma outra face do coronelismo e do latifúndio. Tião Medonho foi um aplicado burocrata do crime, uma espécie de funcionário público em busca do tesouro do trem pagador que assaltou. O Luz é, ao contrário, um solitário, um franco-atirador, niilista, o sujeito da demência urbana, industrial.
Lampião podia aspirar ao poder, ostentar o título de governador do sertão. Tião colocava o crime em perspectiva: tudo o que lhe importava era um devir, um futuro -breve, era um criminoso construtivo, se é que se pode falar assim. O Luz, não.
O Luz é a desconexão, por um lado, mas também uma leitura particular do existencialismo: a escolha pessoal, o "aqui-agora" é que rege sua vida. É quase certo que o cidadão João Acácio Pereira da Costa nunca leu Sartre ou Huxley, mas as idéias viajam, e não necessariamente em livros.
Se Lampião representa o banditismo do Nordeste e Tião Medonho o do Rio/Capital Federal, o Luz é o marginal paulistano, caótico e boçal, perdido entre as seduções da mídia, do desejo, do status. Ele não aspira ao poder, nem pensa em aposentadoria. É um bandido agônico, sem eira nem beira.
Só vale o "aqui-agora". Nisso, a ficção do filme e a realidade coincidem plenamente. Para onde vai João Acácio? Não tem muito aonde ir. O importante é tomar um guaraná e comer um chocolate. Experimentar a liberdade.
Ele e sua imagem revelam e reconstituem a vida urbana dos anos 60. Ajudam a compreender essa mistura de anseio por liberdade, imediatismo e desespero (político, sobretudo) que caracterizaram aqueles anos. O que o Luz ilumina vale certamente, para a cultura brasileira, mais do que mil promotores de Justiça, como essa que agora queria porque queria interná-lo como maluco.
O Luz sabia que a loucura é apenas um modo de controle cultural. Se não sabia, Rogério Sganzerla sabia. Captou isso em suas aventuras criminais com uma sensibilidade raramente igualada e traduziu-as em imagem. Hoje, a cultura urbana é construída sobre isso (e o Luz apenas um tímido precursor): assalto a mão armada, estupro, assassinato gratuito.
Qualquer menino de esquina é um Luz ao quadrado: sua existência se confunde com o instante que vive; cada instante, com a brutal ausência de perspectiva (a mesma brutalidade e covardia que usam para roubar mulheres nos sinais de trânsito).
Esse tipo de situação cultural não é um acaso. Se "O Bandido da Luz Vermelha" é um grande filme, isso se deve em parte a isso: ele percebeu com nitidez para onde iam as coisas. Tomado sob o ponto de vista exclusivo da criminalidade, o Luz hoje seria um acadêmico.
Sua ótica era exclusivamente a da marginalidade. Não teria cabeça, jamais, para o crime instituído e organizado, que é o que vigora atualmente (quadrilhas de tráfico de entorpecentes, prostituição infantil, caixa dois de campanha política etc.).
É um "homem-sintoma", um homem de seu tempo. É improvável que, hoje em dia, represente algum perigo. O Luz faz parte de uma cultura individualista; não tem nada a dizer num mundo dividido entre gangues e corporações, como o de hoje.
O Luz de hoje é a lenda de um mundo que se foi. Quais foram seus feitos, quais suas perversidades? Já não interessa.
Como dizia John Ford: se a lenda supera a realidade, imprima-se a lenda. Apenas como PS: a correspondência de Glauber Rocha, recém-lançada, expõe, entre outros aspectos relevantes, certas maquinações de Glauber contra "O Bandido". Elas ajudaram a confinar o precioso filme de Sganzerla no estranho gueto do "udigrudi". Na verdade, é um filme de linhagem popular, que fez sucesso quando de seu lançamento em cinemas.

Filme: O Bandido da Luz Vermelha
Produção: Brasil, 1968
Direção: Rogério Sganzerla
Com: Paulo Villaça, Helena Ignez, Sérgio Mamberti, Sonia Braga
Quando: a partir de hoje, na Estação Vitrine 2 (r. Augusta, 2.530, tel. 011/853-7684)

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