São Paulo, domingo, 31 de agosto de 1997
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A vingança dos 90

NELSON DE SÁ; OTAVIO FRIAS FILHO
DA REPORTAGEM LOCAL E DA REDAÇÃO

Em 91, com "As Boas", de Genet, Zé Celso voltou ao teatro comercial após duas décadas. Em 93, com "Ham- let", de Shakespeare, reabriu o teatro Oficina após uma reconstrução que se arrastou por uma década.
Desde então o decano do ócio, como chegou a ser chamado, dirigiu seis peças, com características singulares como o homoerotismo. "Nestes sete anos, o que veio é tão bom quanto o Oficina dos 60, se é que não é melhor", diz. "Se é que não vão, no futuro, ver que abriu caminho para o canto."
Folha - O que o fez voltar a encenar uma peça, nos anos 90? O que o moveu a sair do subterrâneo?
Zé Celso - Mas eu sempre quis montar. Eu não queria, não quero, deste jeito que o teatro-empresa determina. Daí "Ham-let". Eu quero vingar. O teatro, na linha em que eu atuo, tem uma maneira de acontecer. O Artaud, no último espetáculo, reforça ainda mais o teatro como presentação, não como representação. E mesmo "Boas" era um evento, com um ator jovem, Marcelo (Drummond), e um "decano do ócio" contracenando com Madame. Quer dizer, um acontecimento político. Era um happening diário.
Folha - Tanto era um happening que você demitiu Madame.
Zé Celso - (ri) Então, não foi uma volta, foi uma retomada. Tanto que eu vejo o texto de "Gracias Señor", que é de 71, como um roteiro do que é o Oficina, hoje. Esclarece o que se fez com "Boas", "Mistério Gozoso". Dá a continuidade do trabalho, que está em fase de balanço. Agora estamos botando na Internet, para mostrar o que aconteceu e está acontecendo nestes anos 90 e que ainda não é lido com clareza, como foi lido o repertório nos anos 60.
E surgem estudos de todo lado. Hoje recebi mais um, de uma menina que está em Londres, escrevendo sobre "Ham-let". É um período que não teve intermídia forte, quer dizer, não teve programa, nem cartaz. As pessoas sentem o que está acontecendo, mas não conseguem verbalizar. Antes eu escrevia um texto que praticamente dirigia a recepção. O programa dizia o que era a peça, e agora não tem mais. Tem que ser direto. A mídia teatro atuou duro, corpo a corpo. Quem viu, viu. E agora é que vai sendo estudado.
Folha - Como você reage à observação de que, quando começa a ter aprovação das instituições, você implode deliberadamente?
Zé Celso - É engraçado...
Folha - Em "Boas" começou uma consagração, saiu na "Veja", e você deu um jeito de acabar com a peça, demitiu Raul Cortez.
Zé Celso - É o tal caminho que não é o caminho. Nas "Boas" eu tive o aval do Raul. Foi possível fazer, mas até um certo ponto. Eu sei que tenho que negociar com esse outro pólo, mas chega um ponto em que, para tocar para a frente... Por que Madame saiu? Porque é irreal produzir uma peça se o ator que leva 20% não participa da produção. Eu, como Solange, pagava Madame todo dia. No último, Madame fez um escândalo com uma secretária. Não dá. O teatro não permite esse tipo de relação. Mas também não é bem isso. Aqui agora, a dificuldade concreta é que a gente levou ao limite, um limite que a gente quer saltar.
Folha - No primeiro Oficina havia uma linha evolutiva, stanislavskiana, brechtiana etc. De "Boas" até "Ela", você vê uma nova linha?
Zé Celso - Com a maior clareza. Este repertório aponta para o que aconteceu na Bahia, no Rio: o espetáculo orgiástico de multidão e, ao mesmo tempo, acoplado à televisão. Não é uma ilusão. É uma necessidade o teatro brasileiro encontrar um espaço autônomo, dele, dentro da sociedade como ela é, a sociedade de massa.
Folha - O que esse repertório mais recente tem de singular? O que é o teatro Oficina, hoje?
Zé Celso - No trabalho do Oficina, hoje, existe uma leitura do Brasil. É teatro, mas também tem uma reflexão, uma leitura original. Com um dado ainda, ligado ao que chamam de homoerotismo, importantérrimo. Que não é igual ao "gay power", que é uma outra coisa. Solange e Clara nas "Boas", o Hamlet do Marcelo. A figura mais bela desta história é o Marcelo, a mais maldita e a mais bela.
Folha - O homoerotismo é uma característica que une as peças?
Zé Celso - É evidente. Mas o Fransérgio (Araújo, ator) tem usado uma expressão que é melhor, e que é linda, amor livre.
Folha - Mas isso não é tentar ler com os olhos dos anos 60 o que acontece hoje? "Rei da Vela" não foi retomado da mesma maneira que foi escrito, na década de 30. O que é o Oficina hoje?
Zé Celso - Antes de tudo é uma arquitetura específica, cercada por uma empresa de televisão, e onde se batalha dentro de certa qualidade estética. Que está no cerco da ordem liberal, e mesmo nele conseguiu construir um repertório.
Folha - É um foco de resistência?
Zé Celso - Não, é um foco de expansão. É um foco humano que projeta avançar no Minhocão em frente, expandir a respiração no centro da cidade. Existe um programa. Ele está bloqueado, mas existe o embrião dele. Realmente o mundo mudou, não vai ter volta. A gente entra numa outra época. Então, os trabalhos deste tipo são trabalhos fundadores, de um trabalho novo, como falava Rimbaud. O teatro passa a ser civilizador, como dizia o Artaud.
O Oficina materializa uma réplica à ordem liberal na sua geografia urbana, no seu estilo de interpretação, no seu repertório. Se você não entender que este ponto pulsante pode, junto com os maiores arquitetos do Brasil, Lina Bardi, Paulo Mendes da Rocha, sonhar com um oásis de fertilidade pública, e achar que a única saída é o shopping center... É importante entender a função do teatro. A minha insistência em ficar tem o sentido de demonstrar que o teatro tem poder, que o homem pode mexer com as engrenagens.
Folha - O seu teatro é, nesse sentido, de ação política?
Zé Celso - Eu acredito que o Brasil tem condições de dar uma réplica à ordem americana. O Brasil, a Rússia, Índia, países que têm cultura forte, cultura popular forte. O Brasil não está condenado a ser este Canadá, este sub-Estados Unidos. E a chave está na cultura. Este trabalho tem uma ambição política enorme, e ao mesmo tempo na liderança dele está um veado. Antônio Conselheiro é um veado, o que dá uma complicação extraordinária, porque não é a família, a dinastia clássica de circo. Inevitavelmente, é uma companhia centrada no amor livre.
Folha - Como você compara os repertórios dos 60 e 90?
Zé Celso - Nestes sete anos, o que veio é tão bom quanto o Oficina dos anos 60, se é que não é melhor. Se é que não vão, no futuro, ver que abriu caminho para o canto. O primeiro Oficina foi cantar com "Roda Viva" e teve o AI-5, fechou. Veio para esta pista ambiciosa, para este repertório. Tudo está sendo reinventado, mas eu tenho metas claras. Eu sei que é importante "Cacilda", por exemplo, porque traz a profissionalização, traz a história do teatro. E traz uma mãe do teatro para a cena.
Folha - Mas o eco político, social das peças, assim como de todo o teatro, é menor, hoje.
Zé Celso - As peças que estão sendo feitas no Oficina, elas acabam ecoando. Como? Um professor de literatura defende a tese de uma peça que ainda nem foi feita. Um professor de psicanálise fez um livro maravilhoso do Oficina. Eu dou importância ao trabalho teórico, também, porque é uma teoria equivocada que nos coloca neste tabu. É importante ter estudiosos que valorizem o trabalho de outra forma. É que as coisas ainda estão nas peças. O Marcelo releu o "Ham-let" e é como "Rei da Vela", é ainda mais atual, no sentido da política brasileira, das relações humanas. "Bacantes" também.
Folha - Essas peças são espelhos políticos, sociais do Brasil?
Zé Celso - São mais. Além de espelhos, elas interferem nervosamente, mesmo que a interferência se manifeste pelo próprio bloqueio. Essas peças são muito generosas. É um banquete este repertório de "Boas" até "Ela".
Em "Bacantes", como os índios com o ritual deles, nós recriamos o ritual do teatro. A antropologia sabe o valor disso. Como os índios, quando restauram o mito e a tribo adquire força, a gente restaurou o mito de Dionísio. Tanto que está vivo, a gente sente falta de praticar o ritual. "Bacantes" é para ficar eternamente em cartaz, é como o Carnaval, ou a missa. E o "Juízo de Deus", do Artaud, que é... Tem gente que não viu e não aceitou, porque acha o cocô uma agressão. No entanto, é a minha direção mais avançada, porque feita no dia e na hora. Tem toda uma reconstrução com a energia do dia.
Folha - Como este ritual do teatro, no dia e na hora, se compõe com a ordem liberal?
Zé Celso - (ri) Eu saí no anúncio da Hering e estão achando melhor do que uma peça. "Um comercial. Nossa, é o máximo!" Para mim, isso é uma loucura. Mas é claro que eu quero participar, quero comer o marketing, sem ter que me submeter. "Ela", Sua Santidade, vem agora ao Brasil e foi beneficiada pela lei Rouanet. Está recebendo milhões em incentivo cultural. Os empresários que investirem vão estar com "Ela". Vão poder agitar os lenços com as suas marcas, e ter as suas almofadas. Eu também quero fazer esse teatro. Eu quero brincar com a ordem mundial.

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