São Paulo, sexta-feira, 5 de setembro de 1997 |
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Loucura necessária
JENN CROWELL Com 17 anos, a norte-americana Jenn Crowell escreveu "Loucura Necessária", história de uma mulher de 30 anos que assiste a leucemia definhar seu marido; Leia a seguir trechos do livro, que a Bertrand Brasil lança este mês no país, publicados com exclusividade pela FolhaOlhei para trás e vi Bill no chão de costas na parede, o queixo voltado para baixo e dobrado em um ângulo desconfortável, os olhos fechados e pijama semi-aberto. Sua cabeça toda balançava com o esforço. Minha mão deu um tranco e a água derramou-se pelo pescoço e peito. Ele sorriu. Era um sorriso minúsculo e primitivo Ele jogou o braço por cima de meu peito, não como um abraço, mas num reflexo desesperado. Seus braços e suas pernas espasmavam. Na testa franzida, o suor brilhava em glóbulos minúsculos. Lambeu os lábios rachados e emitiu um gemido rouco. Cheirava a ferro almiscarado, agonia e suor. Abracei-o e comprimi meu pulso de encontro a seu rosto. Afastei os lençóis com uma das mãos e pensei: água. Sentei-o na cama, passei meus braços ao redor de sua cintura e o levei pelo corredor até o banheiro. Quando acendi a luz ele abaixou a cabeça, esfregou os olhos e gritou. Encostou-se na pia. Seus dedos apalparam os botões enquanto eu me ajoelhava no linóleo para ajustar a torneira. Meus joelhos estavam doloridos. Meus dedos doíam. Testei a água e a esfriei até ficar suportável. Olhei para trás e vi Bill no chão de costas na parede, o queixo voltado para baixo e dobrado em um ângulo desconfortável, os olhos fechados e pijama semi-aberto. Ajudei-o a levantar-se e o mantive ali em pé, livrei-o da flanela quadriculada até ela cair no chão, senti a vergonha de Bill originada da intimidade decorrente da dependência e não da paixão. Equilibrei-o para que os joelhos não se dobrassem quando entrou na banheira. Ele mantinha o rosto afastado de mim e o olhar voltado para as rachaduras na parede ladrilhada. Ficou ali, na água gelada, deitado de costas. Ela fazia pequenas ondas sobre os hematomas preto-amarelados. Ele encostou a cabeça para trás, meus dedos a suportaram como se fosse de um bebê. Peguei uma toalha de mão e lavei as depressões do pescoço e depois escorreguei o pano ao longo da água. As ondas pulsavam em seu peito. A respiração chegava em tremores entrecortados e profundas. Fiquei ali sentada enxugando, sentada e banhando. Lentamente o choque atingiu seu corpo. Os ombros tremeram. Bill levantou a mão e passou o polegar em meu pescoço no mesmo lugar onde eu o lavara. A água pingou deixando uma mancha molhada em minha camisola. - Obrigado - disse Bill. Mais tarde, já vestido, ele sentou na beira da cama e eu medi a temperatura. À luz da mesinha de cabeceira esforcei-me para ler o termômetro. - Droga! 38.8. A febre voltou a subir. Ele se enroscou em cima da colcha. - Vou dormir mais. - Não vai até eu chamar dr. Levitch. Fôramos avisados que as drogas o tornariam suscetível às infecções, as quais, embora aparentemente simples, podiam ser perigosas. Dr. Levitch confirmou ser uma dessas, de forma que às três da manhã eu ajudei Bill a vestir o casaco, sacudi meu filho para acordá-lo e, com mil desculpas, depositei-o na casa de Deepa Romdourl e levei Bill para o hospital. Ali ficou deitado esmaecido e brilhoso entre os lençóis engomados enquanto eu, sentada a seu lado até o amanhecer, beijava-lhe o pulso sem parar e fazia promessas enlouquecidas sobre a Austrália. Quando retornou para casa sentia-se tão fraco que na primeira noite, no jantar, precisei levar o garfo até sua boca. Bill comeu algumas garfadas, depois enfiou a cabeça em meu ombro e soluçando disse "me desculpe, me desculpe". Dei umas palmadinhas em suas costas. Curran olhava para nós horrorizado. Fiz-lhe um sinal para sair do quarto. Bill levantou a cabeça. Emitiu um som profundo na garganta. A boca estava tão ulcerada que só conseguia expressar-se com poucas palavras. - Não se esforce. Rasguei um pedaço de papel dos meus projetos de aula. - Toma. Escreve. Cobri a sua mão com a minha para afirmá-la. Num rabisco trêmulo Bill escreveu em letras de forma: "droga, eu não quero morrer!" - Claro que não. E nem vai meu amor. Foi apenas uma recaída. Dr. Levitch disse que poderia... Antes que pudesse ajudá-lo, ele tomou de novo a caneta e escreveu: "você não é deus, você não sabe." - Não - respondi - não sei. Aquelas noites de final de outono. Deitados na cama, levemente trêmulos, apreciávamos o ar fresco. À luz do luar Bill parecia ser de prata. Eu desenhava sua boca com meus dedos e pensava, meu anjo, o inverno está chegando e nós precisamos abarrotar nossos estômagos agora antes que a forme chegue. Uma vez ele contou que, febril, me viu parada ao pé da cama, o cabelo preto rodopiando em volta de meu rosto e a cabeça envolta em nuvens de tons vibrantes vermelhos, roxos e azuis, as cores dos vitrais das igrejas iguais às da mulher no quadro O Perfume, de Russolo. Ele gritava e gritava e tentava me alcançar, em vão. - Você estava com uma febre de 39°. Estava alucinando. Ele me abraçou. - Não me importo. Não quero que você fique fora de meu alcance jamais. Naquela noite Curran perguntou na hora do jantar: - Os mortos lembram? Bill foi para o estúdio pela última vez numa tarde de sábado em meados de dezembro. Fui buscá-lo de carro. Saiu usando as velhas calças jeans e um casaco feito de um cobertor com um padrão dos índios navajos e um lenço vermelho amarrado na careca. - E como foi? - perguntei. - Ótimo. Sentado no banco traseiro, Curran perguntou: - Pai, você ser vai ser famoso? - Eu espero que sim. Nesse dia, ele terminou Loucura Necessária. Natal. Os canos congelaram. Fizemos amor debaixo de três cobertores e bebemos café. Os dentes de Bill se entrechocavam. O mundo compunha-se só de frutos sacros e vento uivante. Beijou minha têmpora e disse: - Nunca haverá outro momento como esse. - o dia seguinte, era Boxing Day: Bill acordou sentindo-se péssimo. Tinha uma leve febre, mas nenhum de nós preocupou-se com ela. Decidimos que era apenas cansaço por causa da correria do feriado. Dei-lhe umas aspirinas e prometi manter Curran afastado de seu caminho; então, satisfeito, ele adormeceu. Mas de tarde ele piorou. Debatia-se e suava, a respiração arfante. Precisei segurar-lhe a cabeça para manter o termômetro sob a língua. Dei-lhe as costas e li a temperatura. Fiquei de queixo caído. - Não... não está tão ruim como da última vez, está? - perguntou. Rapidamente virei-me para encará-lo. - Oh não, nada disso, mas acho que vou ligar para o dr. Levitch só por medida de segurança. Levantei-me. Ele segurou minha mão e puxou-me para junto dele. - Não vá. - Só vai demorar um minuto - eu disse e beijei sua testa. No corredor encontrei-me com Curran. - Amorzinho, me faz um favor e fica com o papai enquanto chamo o médico. - Tem alguma coisa errada? - Ele está com uma febre ruim. - Ele vai ficar bom? - Creio que sim, mas ele está preocupado. Anda, vai. Eu estava a ponto de ligar para o número de telefone da residência do dr. Levitch quando ouvi um grito vindo do quarto. - Mãe! Mãe! Corri para lá e encontrei Curran no chão chorando. Na cama, Bill tinha os olhos revirados para trás e os membros agitavam-se frenética e convulsivamente. Bill estava deitado com a cabeça voltada para mim no travesseiro. A perda de peso havia aguçado suas feições e formado ângulos dando-lhe uma aparência enrugada e faminta. O calor suavizava a carne. Ele era só pele, como um papel ceroso arroxeado, um bebê e um velho ao mesmo tempo. Atada a seu pulso, enfiada numa veia cheia de cicatrizes, havia uma agulha que saía de um tubo finíssimo onde pingavam os antibióticos. Certa vez li uma história sobre Houdini e sua mulher, como eles planejavam juntos os truques. Antes de começar, ele lhe dava um beijo de adeus na frente do público e ela lhe passava a chave que abria as correntes. Eu adorava essa sua imagem, pálida, o rosto saturnino sob um chapéu de abas largas, o jeito de todas as mulheres na virada do século, as faces coradas de antecipação enquanto ela se aproximava dele para sentir o roçar de seus lábios, o metal frio esperando na língua. Noite após noite sentei-me ao lado de Bill, de pés juntos sobre o chão de linóleo de pintas cinzentas, com os dedos da mão no colo enrodilhados num lenço de papel e a cabeça encostada para trás. Eu gostava de segurar sua cabeça entre as mãos e apertar a boca na sua, dar-lhe a chance para a liberdade. No terceiro dia do novo ano, quando entrei no quarto encontrei Bill se debatendo. Corri para seu lado e estendi a mão para tocá-lo mas ele se retraiu. - Quem é você? -perguntou. Eu não me lembro de você. Você não deveria estar aqui. - Bill, sou eu. Você não... - Saia daqui! Corri para o corredor chorando e pedi a alguém para buscar o dr. Levitch. - Quando sente dores fica desorientado -explicou o médico. Vá dar uma volta e procure se acalmar. Vamos medicá-lo e logo ele estará bem. Segui o conselho do médico e ao voltar Bill dormia enroscado, de costas para mim. Brilhava de suor e inocência. Depois de alguns minutos acordou e virou-se. - Oi -disse suavemente. Há algo errado? Você parece que andou chorando. Contei o que havia acontecido... A uma hora da manhã, em pânico, ele ergueu a cabeça e me chamou. - Glória. - Estou aqui. - VOcê não vai me abandonar vai? - Não, meu amor, vou ficar bem aqui a seu lado. - A noite toda? - A noite toda. Seu rosto relaxou. Recostou-se novamente no travesseiro. Nada mais da conversa de sempre como eu devia estar exausta, que eu devia ir para casa. Ele sorriu. - Ótimo. Com uma das mãos deu umas palmadinhas no colchão. Levantei-me da cadeira e sentei na cama. Embora desajeitado, mas seguindo seu instinto, ele escorregou os dedos pelo lençol até que eles encontrassem os meus. Agarrei-os com força. - Não largue - pediu. Durante as 16 horas seguintes fiquei imóvel. Não conseguia olhar para o rosto de Bill. Ao invés, olhava para um fio desgastado do casado do pijama, para os botões nacarados. Senti vontade de abri-los com força com as duas mãos, deitar a cabeça em seu peito e sentir a batida surda do coração entre as costelas, mas não o fiz. Poderia machucá-lo. Às três horas daquela tarde, ele levantou o braço, puxou-me a seu encontro até seus lábios ficarem próximos à minha orelha e murmurou algo com um som seco. - O que? -sussurrei de volta. Apesar de não poder atendê-lo, eu detestava pedir que repetisse o que havia dito; naquele ponto, cada palavra que saía de sua garganta ressequida representava um sacrifício. - Por favor. Algo contra a dor. Ele me fitou. Vi um retraimento repentino em seu olha, como um cinto que se aperta. Sua pele estava liquefeita. - Tudo bem. Espera aí. Com a mão livre alcancei o fio pendurado sobre sua cabeça e apertei o botão com o polegar para chamar a enfermeira. Em seguida a porta abriu-se. Bill piscou para a luz que brilhava no corredor. A enfermeira aproximou-se da cama e injetou o líquido analgésico no tubo intravenoso. Bill gemeu um pouco. Ela olhou para mim. - Se precisar de mais alguma coisa é só me chamar -disse baixinho. Seu cabelo louro encaracolado estava tão esticado para trás que eu podia ver o pulsar em sua têmpora. O crachá preso na blusa dizia rebecca. Lembrei-me que fora o nome original de Pandora Brennan, e de meus dias em Leigh Street, quando as preocupações eram tão deliciosamente triviais. A enfermeira saiu e Bill deitou-se de volta nos travesseiros. Tossiu. Era um ruído solto, que arranhava. Ele engastou-se um pouco, tentou falar, mas tudo o que emitiu foi um estalido fútil. - Água -lembrei-me. Ele acenou com um levíssimo movimento do queixo. Inclinei-me para a mesinha de cabeceira e peguei uma xícara de plástico com cuidado para não apertá-la demais e arriscar derrubar o líquido. Segurando-a com uma das mãos escorreguei a outra debaixo de sua cabeça para levantá-lo. Ele resistiu, as linhas de sua testa se aprofundaram, dizendo, não "não, deixa que eu faço", lutando por aqueles últimos resquícios de autonomia. Coloquei a borda da xícara entre seus lábios. Ele bebeu em goles frágeis e rápidos. Sua cabeça toda balançava com o esforço. Minha mão deu um tranco e a água derramou-se pelo pescoço e peito. Ele sorriu. Era um sorriso minúsculo e primitivo, mas eu quase chorei quando vi o rosto se iluminar abrindo-se de prazer. A beirada da xícara enxarcou-se de água e rachou. Joguei-a na lata do lixo. - Você está com olheiras. Ele pegou em minha mão, levantou-a até a boca e beijou as pontas dos dedos. Duas horas mais tarde ele estava morto. Naquela noite fui de metrô do hospital para casa e caminhei uns momentos pela Upper Street. Minhas mãos estavam duras de frio apesar de tê-las enfiado nos bolsos do casaco e meu rosto ardia. Enquanto passava por "pubs", lojas de artigos eletrodomésticos e bares, eu pensei, "meu Deus do céu, agora não tenho ninguém que me abrace. Está acontecendo de novo". Eu estava chorando quando Deepa Rombourl abriu a porta do apartamento. Cheirava à farinha, seda e retorno ao lar e me abraçou com um braço moreno e macio. Apertei-me de encontro a seu ombro e respirei com força e longamente, as lágrimas de pura exaustão manchando seu sári cor de pêssego. Ela me levou até a cozinha e sentou-me afagando meu cabelo maternalmente antes de ir lavar os pratos. Apoiei a cabeça em meus braços e esfreguei meu polegar na toalha de plástico da mesa enquanto observava Curran que estava deitado de bruços no sofá da entrada. Elke havia ficado com Deepa desde o reinício das aulas. Eram quase 10h00. Bill morrera às 5h00. Enquanto isso, Vari, a filha de Deepa, estava sentada no chão ao lado de meu filho fazendo seu dever de álgebra na frente da televisão. - Droga de polinômio -resmungou. A mãe franziu o rosto. Curran sentou e esfregou os olhos. Eu me levantei. Fui até ele. Ajoelhei-me. Murmurou algo sonolento como "papai, a febre continuava ruim?" Encostou a cabeça em meu peito. As palmas de suas mãos quentes em minha nuca. Perguntei-me se ele podia perceber aura palpável da morfina, as últimas vontades grudadas em mim, mas não respondi. Ao invés, ajudei-o a ficar em pé e sussurrei para Deepa; - Você é uma santa. De verdade. Levei Curran para nosso apartamento mantendo-o bem próximo a mim enquanto ligava cada interruptor: o da sala, do corredor, de seu quarto, do meu. Mordi meu lábio ao ajudá-lo a vestir o pijama, Curran gemendo e bocejando. Ele se enfiou de baixo do cobertor e eu o puxei até seu queixo e dei-lhe um beijo de boa noite. Depois saí e fechei a porta, tirei minhas roupas, coloquei uma velha camisa de Bill e depois me enfiei debaixo dos lençóis gelados, e de alguma forma, não sei como, dormi. Na manhã seguinte era domingo. O dia me pegou em cheio. O ar luxuriante estava tão ameno e quieto que eu esperava que Bill entrasse a qualquer momento com o cabelo despenteado e a seção de arte do "Observer". Ouvi o som de passos indo e vindo do banheiro. Esperei até ouvir o estalido e o roçar das roupas de cama antes de sair das minhas. Curran não abriu os olhos quando me sentei a seu lado. Sacudi-o um pouco. Ele deu um tranco. A doçura do momento, a antecipação de seu olhar -"será que nevou o suficiente para cancelar a escola amanhã? O papai melhorou?- começou a tomar conta de mim. Engoli. - Escuta meu amor. Seu... Os eufemismos bondosos e as preparações cuidadosas reduziram-se a um engasgo brutal em minha garganta. Eu havia esquecido de vestir o roupão e estremeci. Segurei sua mão. - Curran, seu pai morreu ontem à noite. Ele deu um safanão convulsivo e se soltou, voltou-se de costas para mim, os gritos abafados pelo travesseiro onde havia enfiado o rosto com a palma da mão virada para cima. As lágrimas de criança se deslocavam como tremores por sua espinha. Estiquei a mão para tocar seu ombro e ele se encolheu. Texto Anterior: SHOWS; DANÇA; EXPOSIÇÕES; TEATRO INFANTIL Próximo Texto: Crowell, 19, fala de dor que não viveu Índice |
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