São Paulo, sexta-feira, 5 de setembro de 1997 |
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"Crede Mi" reúne o erudito e o popular
LÚCIA NAGIB
Os travellings fulgurantes, em alta velocidade, sobre as águas do mar que abrem o filme e nos introduzem no sertão do Ceará novamente lembram o sertão-mar de Glauber. Mas em outro registro, utilizando como fio narrativo não mais o cordel e os contos populares do nordeste brasileiro, mas o texto "O Eleito", de Thomas Mann, que conta a história de um casal incestuoso cujo filho, abandonado ao mar, um dia retorna para se casar com a mãe. Por um trabalho hábil de Lessa e Roland, o texto erudito de Mann -que é a reelaboração de um conto popular medieval- encontra toda sua dimensão épica quando declamado por populares do interior cearense. Só conheço paralelo desse efeito em "Acto da Primavera", filme de 1963 de Manoel de Oliveira, no qual aldeões portugueses interpretam o "Mistério da Paixão", de Francisco Vaz Guimarães. Mas "Crede Mi" ainda apresenta originalidades com relação à obra-prima de Oliveira. Jogando com a ingenuidade e o desajeitamento da trupe de leigos, que causam em ambos os filmes um efeito de distanciamento, "Crede Mi" abandona a teatralidade estática ao gosto de Oliveira em favor de um movimento constante de câmera. Essa mobilidade restitui ao espectador a sensação do percurso de 5.000 quilômetros que Lessa e Roland realizaram no Ceará, aplicando seus workshops a voluntários leigos. É quase uma volta ao mundo, na qual os reis e rainhas da lenda vão mudando de cara e só se identificando pela coroa. O mais impressionante são justamente essas caras, tomadas em closes enviesados e invasivos como os de Glauber, mas não para salientar o grotesco, e sim a grandeza das feições rudes. Também ao contrário dos populares sem voz de Glauber, os homens, mulheres, velhos e crianças de "Crede Mi" são quase que só voz, ampliada pela música grandiloquente que lhes confere dimensão metafísica. Como se vê, para trás ficou o camponês oprimido e visto como vítima, típico dos anos 60. O que se tem são seres cientes de seu saber e donos de seus atos. Um velho descreve a criação do mundo como se fosse íntimo de Deus. Um repentista recita todos os nomes de pássaros do nordeste como se ele mesmo os tivesse inventado. E, no centro da narrativa, o nascimento do filho incestuoso é a filmagem de um parto real, no qual o rosto contido da mãe e os gestos plácidos das parteiras que apalpam sua barriga e depois retiram o bebê constituem imagens de uma dignidade única no cinema. Os reisados, procissões e outras festas populares são filmados como eventos universais, até o momento em que Roma e o próprio papa se transferem para o nordeste brasileiro. Todo esse efeito grandioso, porém, não provém de altos orçamentos ou tecnologia, mas de simples trabalho braçal, com uma câmera HI-8 (o material em vídeo foi depois transferido para película) e uma "equipe" de duas pessoas. Filme: Crede Mi Produção: Brasil, 1997 Direção: Bia Lessa Com: Maisa Rocha, Thiago Amorim, Daniele Esmeraldo Quando: a partir de hoje, no Cinesesc Texto Anterior: 'Para Gillian' explora sentimento de perda Próximo Texto: "Anna Karenina" de Rose rouba a alma de Leon Tolstói Índice |
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