São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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A mídia e a tragédia da vida privada

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

O jornalista da TV está para o ator assim como o do jornal está para o escritor. O primeiro adiciona aos fatos os trejeitos do canastrão. O outro, o pastiche do folhetim.
A "boutade" vem ao caso: de canastrice e lances de folhetim tem sido feita boa parte da cobertura desse acontecimento global que envolveu a morte da princesa de Gales e de seu milionário namorado egípcio.
Rostos cuidadosamente transtornados ocuparam o vídeo horas a fio para falar de comoção, para rememorar o "conto de fadas", para especular sobre as causas do acidente.
Páginas e páginas de jornais e revistas de todo o mundo esmiuçaram, sob o manto de um recato formal, a tragédia e as rocambolescas aventuras do reino.
Todos homenagearam a "princesa do povo" e desdobraram-se para satisfazer uma demanda sentimental planetária.
O círculo fecha-se perfeitamente quando sabemos que o mundo só conhece a princesa, o ex-marido, a família e o namorado através da TV e da imprensa.
É sintomático que a mídia venha a ser acusada de ter matado Diana sob a duvidosa alegação de que fotógrafos perseguiram o Mercedes-Benz de Al Fayed imprudentemente.
O fato de que essa versão precária tenha sido de pronto aceita e adotada revela a presença anterior de uma percepção dos meios de comunicação como um poder praticamente ilimitado.
Foi a imprensa que criou Diana para o mundo, embora disso ninguém a acuse. Foi a mídia que fez dela, com sua própria ajuda, a mulher mais invejada, admirada e fotografada do planeta.
Tamanho poderio do criador parece conferir-lhe a prerrogativa de eliminar a criatura: "sempre soube que a imprensa a mataria", disse o irmão fatalista. Afinal, não é outra coisa que a mídia faz simbolicamente: criar e "matar" celebridades a cada quinze minutos.
É claro que as questões em torno do papel do jornalismo e dos limites à invasão de privacidade são pertinentes, embora complexas. Nem sempre a demarcação entre público e privado é nítida.
Ricos e famosos confundem voluntariamente essas fronteiras quando posam, por exemlo, no interior de suas casas para revistas tipo "Caras". Ou quando atrizes ficam nuas na "Playboy". Ou quando um presidente aparece em público, intencionalmente, sem a sua aliança.
Nos EUA, casos de políticos com moças de vida duvidosa surgem com frequência nos jornais e na TV. No Brasil, embora políticos desfilem em público com amantes, a tendência da imprensa é evitar a divulgação.
Está correto?
É óbvio, também, que os tablóides e o sensacionalismo não são modelos éticos, embora, novamente, as coisas não sejam tão simples: quantos veículos de prestígio, em todo o mundo, deixaram de reproduzir as inúmeras fotos de Diana que os paparazzi venderam em primeira mão para pasquins ingleses?
Quantos teriam a preocupação de não divulgar as fotos de Diana e Al Fayed em Paris, se o acidente não tivesse acontecido e a vida continuasse?
É certo que o público quer ver seus semideuses em situações de intimidade e que há uma enorme curiosidade em torno da vida dessas pessoas extraordinárias.
Perguntar se é a mídia que cria essa expectativa para atendê-la ou se a atende para reproduzi-la é cair no paradoxo do ovo e da galinha. Uma coisa não existe sem a outra.
Querer saber porque a mídia exibe certas imagens e fatos e evita outros, pretendendo uma resposta integralmente ética, é igualmente um engano.
A ética, no caso, está, em boa parte, sob a jurisdição do mercado: meu público vai-se chocar demasiadamente com isso? Minha imagem vai ser prejudicada? Vou ser alvo de pressões políticas e institucionais? Poderei resistir? E, afinal, perderei anunciantes e leitores? Esse, frequentemente, é o cálculo.
É útil, porém, que se proceda à discussão, como vem ocorrendo nos espaços mais inclinados à reflexão.
Talvez o debate seja protocolar e não leve a muito. Mas seria desejável que a imprensa responsável pudesse realmente superar sua face canastra e folhetinesca para expor o fato de que também ela é, em alguma medida, representação, montagem e espetáculo -e circula como mercadoria num sistema extremamente voraz e competitivo.

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