São Paulo, sábado, 13 de setembro de 1997
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Aldus, Vera Fischer e o Dia da Imprensa

ALBERTO DINES
COLUNISTA DA FOLHA

Está na contracapa: a leitura é a mais civilizada das paixões. É uma destas obras que se ama a primeira vista, como objeto e como promessa de prazer, pelo tato, pelas imagens, pelo cheiro, pela narrativa e, óbvio, pelo assunto - um livro sobre livros. Não muito volumoso, mas, como dizia Otto Lara Resende, desses que mantemos em pé na estante, "Uma História da Leitura" (Cia das Letras, 405 págs.), do argentino-canadense Alberto Manguel, é uma viagem pela história da conservação e difusão do saber. Numa época em que ler converteu-se em ato político, vale a pena entender como chegamos a isso.
O livro de Manguel junta-se à nova versão do compêndio de Wilson Martins, "A Palavra Escrita" (2a. edição, Ática, 1996), e à pesquisa de Marisa Lajolo e Regina Zilberman, "A Formação da Leitura no Brasil" (Ática, 1996), formando um sólido tripé referencial para quem ainda cultiva as virtudes da curiosidade.
Manguel e Martins tratam de uma figura fascinante, mais substanciosa do que Gutenberg, e, de certa forma, excluída do circuito das celebrações, não fosse o software que leva o seu nome. Aldus (Manucius, 1450-1515) emprestou a dimensão humanista e intelectual de Editor ao ofício de Impressor: a partir de 1496, criou em sua casa uma academia, onde se faziam colóquios diários, traduziu os clássicos gregos e latinos, portabilizou o livro, reduzindo o seu formato para caber na algibeira, arriscou tiragens de mil exemplares e introduziu novos tipos e fontes tipográficas para facilitar a leitura.
Aldus não inventou tecnologias, fez mais -deu substância e dimensão ao mecanicismo de Gutenberg. Se fosse jornalista, não estaria se fingindo de leitor, mas preocupado com o que o leitor precisa. Na realidade, os seus livros podem ser considerados como o primeiro "medium" regular, embora não-periódico, o que faz dele uma espécie de protocomunicador.
Pensando em Aldus, comemoro o Dia da Imprensa festejado em 10 de Setembro, equívoco emblemático de uma instituição atarantada, espremida entre a onipotência e a venalidade. O Dia da Imprensa foi oficializado para lembrar a publicação daquele que se considera o primeiro periódico brasileiro, "A Gazeta do Rio de Janeiro", saído naquela data, em 1808, oito meses depois da esbaforida instalação da corte de d. João VI no Rio. Acontece que o pequeno semanário era um órgão oficial destinado a formalizar as relações governo-governados, o que não lhe retira importância, mas não pode se constituir como marco na difusão de idéias e participação política. Seu redator, frei Tibúrcio José da Costa, foi um escriba palaciano, nada mais.
Verdadeiro precursor do jornalismo pátrio, lançado quatro meses antes, foi o "Correio Braziliense", editado por Hipólito José da Costa, legítimo patrono da nossa imprensa (e objeto de estudo de outro, Barbosa Lima Sobrinho, que acaba de lançar "Hipólito da Costa, Patriarca da Independência", Fund. Assis Chateaubriand).
Esse gaúcho ilustrado, em 1798, foi aos EUA para conhecer Benjamin Franklin e as inovações políticas e científicas da nova república; maçom, preso pela Inquisição de Lisboa (de onde escapou espetacularmente graças à rede de correligionários), reapareceu em Londres para editar sozinho, durante 14 anos consecutivos, o mensário cujo cognome era, significativamente, "Armazém Literário".
Ignoro a lógica que leva autoridades e corporações a manter esta consagração do jornalismo chapa-branca, em detrimento do jornalismo de idéias e debates. Qualquer que seja a razão, a aberração está aí, inflada pelo negócio das festinhas, prêmios e abraços que circundam uma efeméride jornalística na esperança de uma menção em letra de forma.
Este aniversário dos 189 anos de jornalismo brasileiro coincide com a ressaca da orgia mediática em torno da tragédia da princesa Diana. Sentados no banco dos réus ou jogados no divã da psicanálise, os animadores do Circo da Notícia não podem ignorar que a imprensa vive a mais difícil crise de identidade da sua história. Estamos assistindo a um processo esquizofrênico de ruptura entre premissas e resultados com efeito devastador (para usar o adjetivo britânico empregado pela Rainha Elizabeth) na própria credibilidade do ato de informar.
Como demonstração de que, pelo menos nestas plagas, as mortes do casal Diana-Dodi foram insuficientes para aplacar a diabólica trepidação sensacionalista, tivemos na semana passada nova tabloidização da vida privada da atriz Vera Fischer, vítima contumaz das colunas mundanas e da chamada grande imprensa. A partir da quinta-feira, 4 de Setembro, quando Fischer foi internada numa clínica carioca, e durante os quatro dias seguintes, começando pelos telejornais da noite até as edições da última segunda-feira, todos os jornalões na primeira página, noticiários em horário nobre e semanários do fim-de-semana fartaram-se em levantar as mais desabonadoras hipóteses.
Simples suspeitas ou desconfianças foram apresentadas sem qualquer suporte documental ou testemunhal, dentro dos pressupostos de que tudo o que Vera Fischer faz é liminarmente errado e sua vida pessoal deve ser devassada como coisa pública. "Leave me alone" teriam sido as últimas palavras da princesa Diana aos papparazi, segundo o médico francês que a atendeu. A assessora de Vera Fischer chegou a reclamar contra a perseguição dos nossos mosquitos, mas a frase ficou perdida no bojo da matéria.
Este Dia da Imprensa duplamente equivocado faz lembrar uma efeméride meio esquecida: há 250 anos (1747), por ordem de d. João 5º, era desmantelada a oficina de impressão de livros que instalara o tipógrafo Antônio Isidoro da Fonseca no Rio de Janeiro. O episódio é conhecido dos estudiosos, mas convém lembrá-lo, já que só em 1808 a América Latina entrou na era da comunicação impressa, quando a invenção foi introduzida no México, em 1533, e, à época, já funcionavam outras sete tipografias.
A explicação para o atraso sempre recaiu na cupidez da Coroa, desejosa por manter a colônia na mais ignara situação, mas, nas andanças pela Torre do Tombo, em Lisboa, encontrei importantes documentos sobre o assunto. Estavam nos arquivos do Santo Ofício, o braço armado da Igreja: em outubro de 1747, depois da Ordem Régia para desmanchar o estabelecimento do desditado Isidoro, entrou em ação o eficiente aparelho de espionagem da Inquisição para evitar que livros continuassem a ser impressos e que, além disso, circulassem obras jurídicas impressas na Europa.
Remissões históricas que não convém esquecer, sobretudo no momento em que identifica-se o despertar da velha vocação da Igreja para constituir-se como instrumento de ação política, comprometendo a indispensável separação entre Religião e Estado, base dos regimes democráticos. A quermesse partidária de Aparecida, domingo passado, embora não mencionada pelo filósofo José Arthur Giannotti na sua conferência sobre "Moral Pública" na USP, é ilustração perfeita do seu raciocínio: "Acabou a era da política dos anjos, a idéia de um partido que seja capaz de realizar na Terra o reino dos céus..." (Ilustrada, 11/9, pág. 5)
À tabloidização da vida cotidiana, o casal Cardoso oferece como alternativa o mutirão, o espírito de Aldus e Hipólito, na forma de ONGs. Vale a pena tentar. Ou, ao menos, ler a respeito.

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