São Paulo, quinta-feira, 18 de setembro de 1997
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O desejo e o sopro divino

Basilarmente, sem o desejo de alguém não "somos"

ESTHER PILLAR GROSSI

Já houve momentos em que a Igreja Católica se questionou sobre quando a alma se associa ao corpo, a partir de sua visão espiritualista, que distingue os humanos dos animais exatamente pela alma que caracteriza os primeiros.
Entretanto nessa batalha ferrenha contra o aborto, inclusive em gravidez provocada por estupro, assume posição materialista. A de que a vida biológica de um corpo é já a vida humana independentemente da alma.
Proponho uma simples, mas profunda reflexão sobre assunto tão polêmico e apaixonante.
Acatando o princípio de que o corpo é receptáculo da alma e que esta é que distingue e qualifica o ser humano, em linguagem do nosso tempo, nós o expressamos sob a roupagem psicanalítica de que nos fazemos humanos pelo desejo.
Isto é, o que nos diferencia dos bichos é que, para além do nosso corpo, temos uma estrutura psíquica. Esta tem sua gênese nas inter-relações sociais, porque "todo desejo é desejo do outro", na frase lapidar de Lacan -ou em outras palavras, "somos geneticamente sociais", na afirmação de Henry Wallon.
Basilarmente, sem o desejo de alguém não "somos". Uma gravidez gerada por estupro é mais do que sem desejo.
Ela é, efetivamente, fruto de um grave desrespeito ao desejo, de uma agressão -portanto de um "antidesejo".
Mulheres que, já tendo engravidado antes por amor, vivenciam um estupro com fecundação afirmam categoricamente: "Eu não estou grávida de um ser humano. O que tenho dentro de mim é um corpo estranho". Trata-se de um objeto execrável, porque completamente destituído de desejo. É incomparável com uma gravidez.
Por outro lado, quando se engravida porque se quer um filho, desde o primeiro momento ele já é uma criança. Lembro-me emocionada de ter recebido pêsames de um político quando a gravidez de meu primeiro neto se interrompeu aos dois meses de gestação. Ele já era, porque nós o queríamos, já o amávamos doce e vigorosamente e muitos conheciam nossos sentimentos.
Ora, o adequado é que todas as crianças sejam geradas nesse clima. Mas esse é o ideal, a meta ainda longínqua que só com muito esforço se poderá atingir.
O descompasso tecnológico para garantir a gravidez somente quando se quer, mas sobretudo o descompasso afetivo para associar o prazer sexual à saudável geração humana, ainda nos atinge seriamente.
Muitas fecundações acontecem sem desejo, isto é, se assemelham às dos animais, não são funcionalmente humanas. E o senso comum, ou até o bom senso, empurra as pessoas à prática de eliminação desse objeto anormal pela via do aborto.
Quem tem recurso paga uma boa clínica para fazê-lo. As muitas mulheres que são pobres o fazem das formas mais primitivas, arriscando muitas vidas, já constituídas humanamente nos desejos que as sustentam.
Em direção semelhante se situa a mulher para a qual uma gravidez é um risco de vida. É impossível a essa mulher desejar sadiamente o seu bebê. Não desejá-lo é, na verdade, uma faceta de seu direito de legítima defesa. Portanto enquadra-se na mesma argumentação sobre o filho resultante de estupro.
Sejamos, portanto, verdadeiramente comprometidos com a vida no estágio em que nossa civilização (ou barbárie) está, isto é, protegendo as pessoas no nível em que elas se encontram e não na fantasia abstrata do que gostaríamos que se encontrassem, tenhamos como princípio que o desejo é a concretização do sopro divino para imprimir alma num corpo, humanizando-o.

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