São Paulo, quinta-feira, 18 de setembro de 1997
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A questão dos planos e seguros de saúde

JOSÉ MARTINS FILHO

Num país em que o sistema público de saúde reluta em sair da UTI e os planos de saúde privados são o melhor negócio dos últimos dez anos, compreende-se toda a controvérsia que já há alguns anos prospera em torno do projeto de lei enviado pelo governo ao Congresso visando regulamentar essa atividade e que, agora, chega a seu ápice.
Na medida em que o assunto diz respeito a um contingente de 44 milhões de segurados e movimenta algo próximo de R$ 18 bilhões por ano, entende-se por que o governo quer pressa, a opinião pública se impacienta e as empresas do ramo mobilizam na Câmara um lobby que, segundo cálculos conservadores, arregimenta de 80 a 140 deputados; e também por que, depois de cunhar um substitutivo que é cópia do projeto do governo, terminou por se dissolver, não obstante, a comissão parlamentar que tratava da matéria.
Toda a expectativa acerca do que poderá vir a acontecer nos próximos dias reside na seguinte indagação: pretende o Congresso reduzir ou manter a margem de manobra das empresas no que concerne aos reajustes de mensalidades e às habituais exclusões de tratamentos médicos?
Entre as preocupações dos usuários, pelo menos três são de fazer perder o sono. Primeiro, a que limita o tempo de internação e de permanência em UTI -o que significa que, ultrapassada a cota de tolerância, ou o segurado passa a arcar com despesas astronômicas ou o doente é despejado na rua; segundo, a que exclui os procedimentos médicos mais caros, sob o argumento de que inviabilizam economicamente os planos; por último, a que permite reajustes de mensalidades conforme o segurado vai mudando de faixa etária.
Nos três casos, as cláusulas ganham contornos de perversidade. Nenhum segurado fica em UTI porque quer (ou quanto quer), como se estivesse em férias. Por outro lado, a cobertura não-universal de tratamentos médicos mostra que os planos de saúde não raro servem principalmente a si mesmos, não ao interesse e às necessidades reais de seus usuários.
Finalmente, a cobrança de taxas majoradas por faixa etária denuncia o fato perturbador de que os planos se capitalizam durante décadas à custa de jovens que raramente adoecem para depois, sem levar em conta o dinheiro que acumularam, tentar expulsar ou punir esses mesmos usuários quando eles mais precisam de assistência médica.
Naturalmente, pode-se acreditar que, como ocorre em qualquer área de serviços, a competição entre os planos de saúde fará prevalecer aqueles que ofereçam o maior leque de vantagens. Mas isso só tende a acontecer em um mercado realmente diversificado e sem cartelização.
Nesse aspecto, seria extremamente saudável que se abrisse o setor não apenas à participação associada do "capital estrangeiro", como está no projeto de lei, mas à entrada de corpo inteiro das empresas internacionais com tradição e experiência no ramo. Elas seguramente ofereceriam menores preços e cobertura maior, obrigando as empresas nacionais a fazer o mesmo, sem que estejamos fugindo um milímetro da cartilha que, num mercado livre, manda subsistir quem tem competência.
Numa atmosfera carregada de interesses contraditórios e opiniões violentamente divergentes, espera-se dos representantes do povo que saibam para onde se inclina o verdadeiro interesse da coletividade.
Que as leis sejam livres, mas não selvagens. E, se o governo precisar usar sua capacidade de arbitramento, que a use. Mas não se esqueça de que, se há hoje uma batalha econômica em torno de algo que não deveria ser tratado como simples mercadoria, é porque os governos falharam sucessivamente no financiamento e na gestão da saúde pública. E nenhuma solução virá, seguramente, sem que a confiança no sistema público seja restaurada.
Aliás, se o projeto que está na Câmara tem um mérito, é justamente o de fixar regras para garantir o ressarcimento ao SUS (Sistema Único de Saúde) do tratamento de pacientes já segurados por planos privados, evitando a sangria histórica que em muitos hospitais públicos -especialmente os universitários- chega a 30%. São esses hospitais que, como se sabe, sustentam, à custa de enormes sacrifícios, o caro atendimento terciário que, geralmente, os planos não cobrem.
Isso, em boa medida, explica por que os planos nadam em dinheiro, por que o governo não tem capacidade de investimento em saúde e, finalmente, por que a grande massa de desvalidos que não tem acesso a plano algum resulta, muitas vezes, sem nenhum tipo de assistência.

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