São Paulo, sábado, 20 de setembro de 1997
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'Estar sendo. Ter sido' é lamúria pornográfica

PRISCILA FIGUEIREDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vittorio, protagonista da recém-publicada novela de Hilda Hilst "Estar sendo. Ter sido", com 65 anos e certo de estar com um pé na cova, entretece lamúrias em histórias de suas fornicações passadas, receitas de drinks e suicídios.
Em delírio místico/alcoólico, o roteirista procura Mignon, ou Deus, o "Pequenininho", cada vez mais encolhido (imagem ambígua, a que não falta erotismo) nas dobras do cu, no mais humilde, "obscuro e franzino como um cravo roxo", para completar com Verlaine e Rimbaud.
Também idéia fixa em "A Obscena Senhora D", o "preguento" é exaltado pela personagem Hillé, impudica, sexagenária e não menos exilada que Vittorio, como "demolidor de vaidades".
Mas nessa novela, de 82, na qual a derrelição adquire tratamento mais grave, a intensidade dramática sobrepuja o escracho, a bufonaria pervertida, que parece ser mais o timbre da obra há pouco editada.
Em "Estar sendo. Ter sido", o desamparo é, em certo sentido, perseguido (pois ele se daria de qualquer modo). Vittorio paga a um amigo jovem e bonito e ensina-lhe versos de Petrarca para seduzir sua mulher, Hermínia. Assim, compõe um cenário justo para sua senescência e nostalgia, experienciadas numa casa de praia, na companhia de seu irmão e de seu filho, de Oróxis, a nega fulô, e de livros, gansos e cachorros.
Privado de suas forças como um Napoleão, ainda glosa mordasticamente a decrepitude. O que se auto-exilou, aristocrático, porque sabia morto "o sol nas tripas" põe-se a colher fragmentos de epifania, a meditar sobre o buraco fétido como casa do Senhor.
Nessa jeremiada pornográfica, em que se cruzam, entre outras, referências a Ulisses, a Goya, ao desterro de Ovídio, também aos 65 anos, a lamentação e o "desvairismo" congestionam a expressão, entufada de antíteses, oxímoros, arcaísmos, neologismos saborosos, virtudes da autora de "Matamoros", tão engenhosa na composição de "corpalhudo", "gafanhotal", "ofegoso", "vazioso", "vermelhusca"...
O monólogo desfibrado de Vittorio, de registro quase sempre baixo, dominante no texto, em que não deixam de ser fortes os instantes líricos, traz o sol de volta para as tripas.
O velho põe-se à frente da cena (obscenamente), como poderoso narrador que é, em pavor e sarcasmo, sacudindo a imagem, sempre à espreita, da morte, "sépia desgrenhada". Esquiva-se da Dama Escura e de ser um "irrealizável", um "être-pour-autrui", modo como Sartre entendia, na moderna formação social capitalista, a velhice, situação composta de características vistas apenas pelo outro e, portanto, reificadas.
Para esse narrador ranzinza, não avesso à misantropia, não é segredo o que pensam de um encanecido, de "carne sarapintada". A pornografia e a estridência, a fala obscena e obsessiva, como que lhe outorgam visibilidade. Também de seu ponto de vista "o grotesco é o superverdadeiro, o excessivamente real" (Thomas Mann, "Considerações de um Apolítico"), sendo o modo como Vittorio se desespera e se recorda.
A recente editora Nankin fez jus à novela, que mereceu excelente tratamento gráfico, a começar pela capa, com desconcertante foto de Catherine Krulik. A editora está empenhada em divulgar não apenas autores que não integrem o "mainstream", a exemplo de Hilda Hilst, do poeta Roberto Piva e de outros, como também talentos desconhecidos.

Livro: Estar sendo. Ter sido
Autora: Hilda Hilst
Quanto: R$ 18 (127 págs.)

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