São Paulo, sábado, 20 de setembro de 1997
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"O Beijo" pratica confissão de incesto sem culpa

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O beijo dessa história é verídico, um beijo sexual, de língua, entre pai e filha que não se encontravam havia dez anos e só tinham se visto três vezes antes, durante os 20 anos da moça.
Trata-se de um romance autobiográfico ou, como está no subtítulo, um livro de "memórias". A autora, a norte-americana Kathryn Harrison, 36, experimentou o episódio na vida real.
Criada pelos avós depois do casamento e separação precoce de seus pais (a mãe tinha 17 anos quando ela nasceu), a narradora-autora cresceu afastada do pai e rejeitada pela mãe. Por ele, desenvolve uma relação de endeusamento, pela mãe, de ódio e culpa.
"Nunca soube realmente quem era meu pai, e a revelação em si já é uma coisa sedutora. Há também a fascinação de nossa semelhança, parecemos um com o outro em jeitos e maneiras que ultrapassam similaridades físicas", ela confessa.
Publicado em fevereiro nos EUA, o livro virou best seller, embora recebido quase com censura, como ela mesma disse em recente leitura do texto -reproduzida na Folha por Marcelo Rezende, na Ilustrada de 28/6- em Paris.
"A reação na América foi algo que beirava a censura. Eu esperava ser criticada, mas o que ocorria nas resenhas era uma condenação. Todos me condenavam porque eu resolvi escrever uma história que parecia ofender as pessoas. Condenavam-me porque em meu livro não há culpa."
Mas se o tema (o incesto) pode funcionar como chamariz barato, o romance se supera. É pura literatura e pouca biografia. Livro triste, interessante, bem escrito.
A narrativa tem uma surpreendente delicadeza de ritmo, dosando na medida certa as reminiscências de infância, que vão ao mesmo tempo traçando um perfil dos personagens e retardando o momento crucial do encontro sexual entre o pai e a filha. É tudo intenso, dramático, sem ser piegas.
O livro tem uma forte carga sexual simbólica, que começa nos largos espaços de aeroportos, onde ela, sentindo-se uma "fugitiva", vai ao encontro do pai. E que termina na imagem do avião que o leva e traz. Para a psicanálise, a simbologia do vôo tem a ver com o estado de êxtase do orgasmo.
Prisioneira de uma rede de escravidões emocionais, a narradora entra no incesto como quem entra numa porta para a libertação de si mesma. Daí a autora afirmar a ausência de culpa que perpassa sua história. Harrison escreveu três outros romances, sendo o mais recente "Poison" (Veneno), lançado este ano nos EUA.

Livro: O Beijo
Autor: Kathryn Harrison
Quanto: R$ 18,50 (198 págs.)

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