São Paulo, sábado, 20 de setembro de 1997
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Timor e Cuba: solidariedade sem política

ALBERTO DINES
COLUNISTA DA FOLHA

Não estamos na rota do prêmio Nobel para fornecer premiados ou hospedá-los. Galardões ganham-se quando existe um processo de busca de excelência. Não é o nosso caso.
Por outro lado, raros são os "nobelistas" que aportam por aqui (preferimos badalar os gurus do marketing), mais raros os que falam o nosso idioma. Ao que consta, existem apenas dois: o jornalista José Ramos Horta e o bispo de Dili, d. Ximenes Belo, premiados com o Nobel da Paz em 1996.
Em favor da causa do Timor Leste tivemos a visita de José Ramos Horta (a segunda desde que foi agraciado). Curiosamente, até dezembro de 1994, fizera apenas uma breve escala em nosso país. A primeira oportunidade para falar ao povo brasileiro foi durante o Congresso Internacional de Jornalismo da Língua Portuguesa, no Rio de Janeiro.
Os jornalistas que o entrevistaram, depois da dramática exposição no plenário, mal sabiam onde ficava Timor. Rigorosamente nada sobre o terror indonésio contra a população da antiga colônia portuguesa. Em 1991, quando a tropa de Suharto massacrou mais de 200 timorenses que assistiam a um funeral no cemitério de Santa Cruz, em Dili, os correspondentes brasileiros sediados em Lisboa penaram para convencer seus chefes na matriz a publicar as informações de que dispunham.
Timor não vende jornal -era a palavra de ordem tirada das pesquisas junto ao leitorado -o mundo cabia numa página e meia de jornal, as desventuras conjugais de lady Di ocupando parte delas.
O prêmio Nobel encurtou a distância entre Brasil e Timor, forçou nossa diplomacia a rever o seu fascinado pragmatismo pelos triunfos dos tigres asiáticos, acendeu uma pequena luz verde nas redações. A repercussão da primeira visita de Ramos Horta criou aquela bola-de-neve que, infelizmente, ainda determina o destino de tantas causas e projetos: noticia-puxa-notícia, o malvado circuito da celebração.
Ramos Horta veio lançar o primeiro livro editado no Brasil sobre o drama do povo maubere: "Timor Leste, Este País Quer Ser Livre" (organizado por Sílvio Sant'Anna, edição Martin Claret), antologia de textos (que inclui uma carta de Fernando Henrique Cardoso). Excelente introdução ao leitor brasileiro. Em Portugal, a bibliografia registra pelo menos 12 títulos publicados nesta década.
O fato mais relevante desse despertar brasileiro para a solidariedade internacional é a participação de Ramos Horta na rádio Eldorado AM, de São Paulo, em dois comentários semanais. A casa dos Mesquita retoma a tradição de abrigar exilados e perseguidos, sobretudo os de fala portuguesa, que remonta aos tempos da ditadura salazarista. Pelo "Estadão" passaram Miguel Urbano Rodrigues, Victor Cunha Rego, João Alves do Santos e tantos outros.
Aqueles foram tempos em que os jornais não se pautavam pelas estratégias, mas por ideários. Não apostavam, acreditavam. Hoje isso é romantismo nostálgico, "démodé", peça de museu. Mesmo que o jogo pelo poder político fosse, como hoje, mesquinho e rasteiro, havia nos jornais uma nota de fidalguia e nobreza.
O falecido "Correio da Manhã", do Rio, acolheu o antifascista austríaco Otto Maria Carpeaux, a "Última Hora" recebeu o general Humberto Delgado (mais tarde assassinado pelos agentes do salazarismo na fronteira com a Espanha). A lista é longa, merecia ser contemplada em monografia ou tese.
Os indícios de ressensibilização da mídia brasileira para as convocações humanitárias podem ajudar a destravar e despolitizar a solidariedade abrandando um perigoso endurecimento em nome da coerência ideológica. A causa do Timor não pertence às esquerdas, aos liberais ou aos católicos, pertence aos que têm coração.
Afincados no próximo voto esquecemos que a democracia se faz também nos intervalos do calendário eleitoral pelo engajamento comunitário. Quando entramos na Segunda Guerra, as crianças nas escolas do Rio participavam ativamente do programa Horta da Vitória. No largo da Carioca ergueu-se uma descomunal montanha de panelas velhas para serem recicladas e ajudar o esforço bélico.
Vivíamos numa ditadura, e, quando a paz foi assinada, desabou o Estado Novo. Não porque Carlos Lacerda tivesse furado a censura publicando a entrevista com José Américo, mas porque fora desatado o mecanismo do empenho coletivo.
Timor não concerne apenas aos diplomatas. Deve ser uma causa da sociedade brasileira, não apenas porque naquela meia ilha do arquipélago indonésio está em curso um processo de aniquilamento de um idioma, de uma cultura e de uma opção religiosa, mas porque estamos diante de uma das mais antigas e sanguinárias ditaduras do Extremo Oriente falsamente embalada como modelo de desenvolvimento econômico.
Quem derrotou o apartheid foi a comunidade internacional ao cerrar fileiras em torno de um rigoroso boicote aos produtos sul-africanos. A intolerância do regime de Jakarta pode ser dobrada com o mesmo tipo de pressão: boicote aos tênis "made in Indonesia", aos têxteis, às inutilidades eletroeletrônicas, aos móveis de vime (de resto iguais aos daqui).
Para que esses movimentos tenham ressonância, é indispensável que sejam desvinculados do gremialismo político e da disputa ideológica tal como aconteceu com a pressão suprapartidária e supranacional para acabar com o campo de concentração sul-africano. O gesto de deixar de comprar um produto indonésio deve partir da emoção compartilhada -comoção-, e não do título eleitoral.
Há outra ilha a nos convocar: Cuba continua sitiada por um dos mais desumanos cercos da história moderna promovido pelo governo dos Estados Unidos nas mãos do lobby anticastrista de Miami.
Cuba está passando fome, os amigos que voltam de lá trazem histórias comoventes de privações e dignidade, de aviltamento e sacrifícios, de decadência e decência. Não podemos ficar insensíveis. Um magnífico esforço de elevação cultural está sendo esmagado. Como nação e como criaturas, não podemos admitir que o problema de Cuba seja perversamente classificado como problema "da esquerda".
Fidel Castro, não obstante o charme do guerreiro encanecido, é um ditador. Deixou que se derramasse sangue inocente. Mas Fidel Castro é o único líder cubano capaz de fazer a transição para a democracia sem comprometer os avanços sociais que custaram tantos sacrifícios.
Esse é o castigo e o desafio que a História lhe oferece. Virou moda chocar o público mostrando o quanto somos violentos e sanguinários. Pode ser um caminho para a catarse e a reversão dos assustadores indícios de barbarismo. Mas a mobilização em torno de nossas qualidades pode operar milagres. Há um potencial gregário nesse país, vasto repertório de generosidades, vontade de dar as mãos e abrir mão, que transcende à fúria da conquista do poder.
Temos mazelas descomunais -na porta de casa, nas esquinas, debaixo dos viadutos, nas favelas, logo ali onde acabam as cidades. Direitos humanos, direitos do cidadão, direitos do consumidor, direitos do eleitor estão sendo pisoteados diariamente. E não apenas pelos agentes do Estado mas pelo mandonismo corporativista que, há séculos, nele se alterna e se ceva.
Apesar disso, a solidariedade internacional pode ser um atalho para chegarmos a nós mesmos. As dores de mundo dão substância às individuais. A globalização tem este mérito: provocar identidades, estimular a criatividade. Também somos uma ilha -que ainda não se encontrou.

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