São Paulo, terça-feira, 23 de setembro de 1997
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"A Ostra e o Vento" revitaliza o novo cinema

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Eu sou a consciência da paisagem que se pensa em mim". Essa frase de Cézanne tem um sentido amplo demais para ser esgotado. Saí do cinema com isso na cabeça quando acabei de ver "A Ostra e o Vento", o filme de Walter Lima Jr. baseado no romance de Moacyr C. Lopes.
O filme é um marco. Saí também com a sensação de ter visto imagens em que algum mistério é tocado, alguma coisa como um sacrilégio belo. Vi cenas assim em "Limite", de Mário Peixoto, em Murnau, em Dreyer.
Bato o telefone para o Walter Lima, o diretor, para ele me salvar do sentimento de desamparo que tive ao sair do filme, uma vontade de sentar no meio-fio e chorar, chorar pela história de amor e desespero, chorar pela nossa natureza devastada, chorar pelo Brasil tão pobrinho e querendo fazer filmes, chorar por nossos filmes que só estréiam em brechas deixadas pelo cinemão escroto americano, chorar e, finalmente, chorar por mim.
Ninguém viu ainda "A Ostra e o Vento", pois o filme só entra em cartaz nesta semana. A história é a seguinte: uma ilha, um farol, uns marujos, um louco shakespeariano, um faroleiro violento e sua filha adolescente, querendo viver e amar, que enlouquece gradativamente de solidão, apaixonada pelo vento, que a possui como um amante invisível. Só isso.
Quase nada acontece; o filme é sobre esta tragédia das coisas que não acontecem. A ilha é como se fosse um cinema ao avesso. Um grande cinema ao ar livre na noite, um cinema sem paredes.
Uma ilha, uma sala infinita do mar, personagens perdidos na borda do oceano, velas, vento, estrelas, areia e um farol girando sem parar, como um facho de projetor de cinema que buscasse desesperadamente um filme a projetar. O farol é um olho ansioso como nós, girando sem entender nada, tentando ver, ver, mas só vendo por intervalos de escuridão.
Mas, para me salvar, como disse, bato o telefone para o Walter Lima. E ele me fala sobre nossa vida, minha e dele, nestes 30 anos de cinema (eu, que não filmo mais, eu, que virei um filme de mim mesmo, ilha esquisita projetando frases sobre os outros). Walter me fala dos nossos naufrágios sem bússola nestes 30 anos de cinema brasileiro.
- O filme é sobre alguma coisa incontrolável que fala em nós... Lembrei de "Força Estranha", do Caetano, e de "O Que Será?", de Chico. Lembrei deste impulso estranho que nos levou a filmar durante este século, sempre tentando, sempre afluentes, sempre à beira da "corrente principal" do cinema do mundo.
- Não existe uma linguagem brasileira de cinema, assim como não existe um close americano ou close brasileiro. Não há travelling americano ou brasileiro. Há uma gramática de cinema que foi esquecida durante muito tempo, no desejo ansioso de filmar diferentemente dos gringos. Mas não é na destruição da linguagem que falaremos. Assim, só ficaremos afásicos. Os americanos não são donos da língua do cinema.
- Se eu quiser usar uma "íris" de cinema mudo, "fade-outs", por que não posso? Por que não podemos usar a língua geral do cinema, a narrativa? Quem disse que narrar é trair? Desde Homero se narra. A vida não tem começo, meio e fim? Quem disse que temos de obedecer a uma "regra de ouro" da desobediência? Para desobedecer, temos de obedecer outra linguagem? Eu, se quiser, entro e saio da língua geral -me disse Walter Lima.
(Eu me lembrei de meu primeiro filme de ficção, "Pindorama", quando eu era patrulhado pela linguagem da "vanguarda" obrigatória. Tinha um assistente que só gostava de planos longos e dizia: "Não pode cortar; quando corta, acaba...". Eu filmava em pânico: será que o Godard poria a câmera aqui, será que o Straub poria ali?)
- Cinema para mim tem cheiro de pipoca -continuou o Walter Lima-, eu amava era o Cineac Trianon, o Ritz... Santo Deus... Ali estava o mistério do cinema profundo... E havia ali um "filme" de que todos os filmes falavam, que, este sim, ficou muito esquecido hoje. É um filme impalpável feito o vento, um vento que não dá para filmar, mas que era o "filme" impalpável que os filmes todos prometiam, um sonho realizável, uma promessa de vida...
(Eu me lembrei de Godard: "Eu não filmo pessoas; filmo o espaço entre elas".)
- O cinema foi o grande sonho do século que está acabando e o filme não foi feito, como disse Godard -lembrou também o Walter (sempre esse homem fatal)-, a história do cinema é a história de uma traição. Por isso fizemos um cinema tão reativo, mas agora que as esperanças muito claras de futuro acabaram, eu volto para a água, o fogo, o chão, a ilha, o mar.
- Só me interessa um cinema humanista, da linhagem de Murnau, Sjostrom e Rosselini, um cinema que revitalize o cinema, essa coisa longe que se perdeu... Esse cinema supertecnizado, com incríveis efeitos especiais, só serve para acabar com nossa imaginação. Tanta é a liberdade que não nos sobra nada para sonhar. No duro, eu acho que cinema é para filmar a natureza e o desejo humano. Só.
(Walter desligou e eu fiquei sozinho com o filme dentro de mim, que é onde os filmes devem ficar. A fotografia de Pedro Farkas, a cenografia de Clóvis Bueno, os atores Leandra Leal -genial-, Fernando Torres e Floriano Peixoto são personagens de Shakespeare. Aonde eu ia, o filme ia dentro de mim. Até que eu entendi: a menina do filme é a natureza se pensando, desejando, e é esse impulso a única coisa que ainda temos de preservar e revitalizar no mundo, quase que uma ecologia do desejo.)
P.S.: A última imagem do filme é uma imperdível surpresa.

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