São Paulo, sexta-feira, 26 de setembro de 1997 |
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HAMLET
NELSON DE SÁ
Não existe propriamente um "Hamlet" original, até porque Shakespeare não escrevia assim. Há cenas em "Hamlet", o texto, que teriam sido acrescentadas em montagens posteriores pelo próprio Shakespeare (caso da "guerra dos teatros", para dar um de vários exemplos). Por outro lado, Shakespeare teria retirado outras tantas cenas e versos. A peça seguia a dinâmica própria do teatro e de seu público (e da censura, não é demais lembrar), e o texto que sobreviveu seria antes uma somatória do que uma obra integral, idealizada como tal. O problema deste "Hamlet" de duas horas, de Kenneth Branagh, não é de fidelidade. É de edição, e edição cinematográfica. Os cortes feitos para compor a versão menor, realizados pelo próprio diretor/protagonista, levaram a pelo menos um grande desrespeito com seu filme: a cena de Charlton Heston como o Primeiro Ator, quando ele narra a morte de Príamo, em texto que Shakespeare provavelmente adaptou de "Eneida", de Virgílio (e que possivelmente ele mesmo interpretava, nas montagens de sua companhia). Críticos ingleses e norte-americanos, quando do lançamento deste "Hamlet", diziam que o velho ator de "Ben Hur" (e de muito mais, inclusive adaptações shakespearianas para o cinema) "roubava" o filme. Desde sempre foi a cena que mais comoveu este crítico em "Hamlet", inclusive no teatro. Com Charlton Heston, tomado de uma autoridade "anciã" que combinava inteiramente com aquela descrita em Príamo -o velho rei de Tróia que cai morto-, a cena atingia ares verdadeiramente trágicos, em seus poucos minutos. É o personagem que, de tão perturbado, desvairado pelo que interpreta, leva o príncipe Hamlet a ofender a si próprio, por não reagir, por não agir -sendo que tem uma tragédia tão maior diante de si, que é o assassinato de seu pai. Kenneth Branagh cortou Charlton Heston, que só volta, por segundos, em outra cena, menor. O ator-diretor cortou muito mais, com resultados também empobrecedores para o filme. Ao eliminar o solilóquio do rei Cláudio, quando ele busca penitenciar-se diante de Deus, mas não consegue, retira o segundo maior personagem de "Hamlet". Ao eliminar o deslumbramento de Horácio diante da aparição do Fantasma e o questionamento posterior que Horácio faz de seu racionalismo à Wittenberg, enfraquece todo o filme, até mesmo o "ser ou não ser" de Hamlet. Os cortes menores, a começar do Reinaldo de Gérard Depardieu, em cena sem relação com a trama e sempre a primeira a cair, não chegam a ser díspares do que é costumeiro nas produções teatrais. O que resta? Muito, ainda que estranhamente próximo do "Hamlet" autodescrito como de "sessão da tarde", em cartaz no teatro, em São Paulo. "Hamlet" passa a viver quase exclusivamente do vigor e da violência de Branagh, conhecida desde sua bruta e grosseira interpretação de "Henrique 5º". A cena em que manda Ofélia, a sua paixão, para o "convento" (com duplo sentido, também de bordel) é de uma crueldade assombrosa, quanto mais por estar mesclada de amor. Hamlet agride Ofélia por acreditar (o filme faz tal opção) que ela está traindo seu amor em fidelidade ao pai. A juvenil Kate Winslet, apaixonantemente quebradiça, vive ali seu primeiro e maior contato com a insanidade. Sua Ofélia chega a sofrer mais por Hamlet do que pela morte do pai. O mesmo vale para a cena do quarto da rainha Gertrudes, quando Branagh leva Julie Christie, que faz sua mãe, ao desespero. O "Hamlet" que chega ao Brasil é certamente um filme pior do que o outro, mas ainda um belo filme. Filme: Hamlet Produção: Inglaterra, 1996 Direção: Kenneth Branagh Com: Kenneth Branagh, Julie Christie, Billy Cristal, Gérard Depardieu, Charlton Heston, Robin Williams, Kate Winslet, Derek Jacobi, Jack Lemmon Quando: a partir de hoje, no cine Belas Artes - sala Villa-Lobos Texto Anterior: Tommy Lee Jones é caubói na vida real Próximo Texto: Versões trazem de Olivier a Gibson Índice |
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