São Paulo, sexta-feira, 26 de setembro de 1997
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"O Dia em que Faremos" se rende à tecnologia

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

"O Dia em Que Faremos Contato" elimina qualquer dúvida: existe, sim, um movimento se desenrolando no seio da música brasileira -e, se nome tiver, é aquele cunhado involuntariamente por Chico Science: afrociberdelia.
Há pouco, parecia ser o mangue beat, mas agora seu alcance se amplia. O movimento já não tem a cor tropicalista de conspiração intelectual, de carta de intenções arquitetada na prancheta.
O movimento pop dos anos 90 é espontâneo -ninguém o criou; ele existe, só. É resultado, quando muito, da admiração recíproca de um rol já numeroso de artistas -Mundo Livre S/A, Fernanda Abreu, Planet Hemp, Daúde, Humberto Effe, J.Quest, Mestre Ambrósio, Chico César, Rita Ribeiro, Zeca Baleiro, Virgínia Rosa, até dos veteranos Itamar Assumpção, Lobão, Lulu Santos. E Lenine.
Este, antes afeito à simplicidade de modelos de MPB há muito praticados, rende-se agora -pelo confronto com o mangue e pelo trabalho com Fernanda Abreu- aos encantos da tecnologia.
Isso dá agora ao trabalho de Lenine a pimenta que ele ainda não possuía. É impossível não pensar que o próximo século já chegou quando se ouve a massa sonora de "A Ponte" ou ainda da sensacional faixa "A Balada do Cachorro Louco (Fere Rente)".
Tecnologia se coloca como instrumento a serviço da afirmação e orgulho da nacionalidade. Não é outra coisa que fazem Beck nos EUA, Wyclef Jean no Haiti, Bjõrk na Islândia, Daft Punk na França, Chemical Brothers na Inglaterra.
Nem sempre o CD de Lenine vai nessa linha -consumido por uma empreitada que parece demandar energia e entusiasmo sobrenaturais, o compositor às vezes cai exaurido, quase repetitivo ("Mote do Navio", "O Marco Marciano", "Aboio Avoado").
Não chega a comprometer, entretanto. "O Dia em Que Faremos Contato" define um artista surpreendentemente antenado -e preocupado- com seu tempo.
Entre astronautas, ETs, melodias pegajosas ("Hoje Eu Quero Sair Só") e mosaicos warholianos, Lenine -como tantos no Brasil dos anos 90- redefine recorrente figura que simboliza o momento: a do cangaceiro, evocado aqui em "Candeeiro Encantado".
O cangaceiro aparece como um saci-pererê, ente fascinante do qual todo mundo fala, mas que ninguém nunca viu. Parece bobagem, impróprio à era parabólica.
Mas, após longo período de pasmaceira e cultura estabelecida, o cangaceiro cresce como símbolo próprio: desbravadores contemporâneos se identificam com o personagem fora-da-lei, desafiador de regras estruturais há muito definidas e nunca repensadas.
Crescem as suspeitas de que a tradição de há muito estagnada começa a instigar artistas que, à moda de Lampião, pegam em facões para desferir novas leis, ainda que sob chumbo pesado. Lenine também é cangaceiro.
(PAS)

Disco: O Dia em Que Faremos Contato
Artista: Lenine
Lançamento: BMG
Quanto: R$ 18, em média

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