São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
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Um lançador de garrafas

ANGELA DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nas "Cartas às Suas Amiguinhas", de Lewis Carroll, traduzidas por Newton Paulo Teixeira dos Santos para a Editora Sette Letras, do Rio de Janeiro, partilhamos dos deliciosos estratagemas, altamente lúdicos -marca registrada do autor de "Alice no País das Maravilhas"-, com a vantagem de saborear também a vivacidade de um escritor incomum de cartas íntimas feitas com a privacidade de quem não tem intenção de torná-las públicas.
O livro traz um total de 53 cartas escritas entre os anos de 1855 e 1896, seis delas com datas desconhecidas, tendo como destinatárias 38 diferentes crianças, meninas, em sua grande maioria, com idades entre 10 e 15 anos, as quais ele também fotografava. Da mesma forma que não podemos afirmar o que veio antes, o ovo ou a galinha, também não sabemos se Lewis Carroll escrevia para meninas com o intento de fotografá-las ou se as fotografava só para escrever cartas para elas ou, ainda, se escrever e fotografar seriam apenas elementos complementares para atingir um outro fim: talvez o simples prazer de encantar as meninas que o encantavam. Mas podemos afirmar com certeza a importância dessas cartas para o pastor anglicano e professor de matemática na Christ Church, de Oxford, Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898): é inegável seu investimento afetivo, e é evidente que, para ele, escrever as cartas foi um jogo sério, grande fonte de ternura, prazer e alegria, além de treino do estilo da linguagem criativa e do singular humor "nonsense" que usava nos livros que publicava.
Observamos o caráter unilateral dessas cartas, fragmentos de uma correspondência onde as destinatárias são indeterminadas em vários níveis. Consta que Lewis Carroll era extremamente cuidadoso com sua correspondência. Curiosamente, nenhuma carta de suas amigas foi encontrada entre seus pertences. Seria este fato relevante? Mais relevante, cremos, seria a própria imagem da indeterminação que é uma menina. Que tipo de retorno seria possível esperar de uma menina de 10, 12 anos para um homem na faixa dos 30 anos? Como já bem disse o escritor francês, estudioso da obra carrolliana, Jean Gattégno (em "Lewis Carroll - Photos et Lettres aux Petites Files", reunidas e traduzidas por Henri Parissot, Franco Maria Ricci Éditeur, 1976): "Escrever para uma criança é escrever a quem não responderá, é lançar uma garrafa ao mar". E Lewis Carroll foi um lançador compulsivo de garrafas, sempre atento à qualquer possibilidade de angariar mais amiguinhas, que seriam focos não só de suas lentes como de suas letras, pois é dentro do campo da linguagem escrita que ele trava seu mais forte jogo de sedução.
As cartas traduzidas são esparsas, não contamos com uma série completa de cartas de uma só destinatária onde talvez pudéssemos observar melhor o desenrolar de uma relação específica com suas muitas dimensões. Sendo assim, encontramos tipos variados de cartas, embora sejam da mesma natureza, com temas recorrentes mas com tons diferentes. De natureza -suave mari magno...- essencialmente afetiva, Lewis Carroll monta seus esquemas com as meninas, com ele próprio, com a linguagem, enfim, ele constrói seu mundo autônomo. Com as meninas, as cartas operam quase sempre dentro do mesmo sistema. Em geral ele lhes conta uma história engraçada, com o objetivo de diverti-las, faz pequenas confidências ("Não conseguiram até hoje tirar uma fotografia que fizesse real justiça a meu sorriso", pág. 28), oferece presentes (quase sempre seus próprios livros), faz perguntas ("O que você bebe comumente no jantar?", pág. 100), sugere ou pede encontros ("Oh, menina, por que você nunca vem a Oxford para ser fotografada?", pág. 57) e faz declarações.
Algumas cartas são designadas cartas-presentes, mas no fundo todas elas o são. Mesmo nas mais agressivas ele utiliza a violência usual entre as crianças, o que deveria surpreendê-las e muito agradá-las, como no caso da carta para Agnes Hugues onde ele conta que "três visitas bateram em minha porta (...), eram três gatos! Não é engraçado? Mas eles tinham uma cara tão zangada e desagradável que peguei o objeto mais próximo (por acaso um rolo de pastel) e esmaguei os três como se fossem panquecas! Se você, minha querida, um dia bater em minha porta, juro que vou esmagar sua cabeça. Vai ser engraçado, não acha? Com todo o afeto do Lewis Carroll" (pág. 107). Algumas histórias são melhores que outras, mas nenhuma é desprovida de interesse, e, mesmo quando são apenas pequenas piadas, estão no mesmo tom das histórias de "nonsense" de seus livros. É importante a leitura da carta que ele escreveu para Magdalen Millard (pág. 50-51) onde ele se coloca como narrador da dualidade Carroll-Dodgson. Assim como também é a da carta escrita para seus irmãos, quando ele joga não só com a questão da autoria como também com a da linguagem.
Tantas cartas, fotos, tantos desenhos, livros, presentes, tanto esforço de Tântalo em uma única empreitada, tudo isso parece resumir (admirando ainda a mesma imagem composta por Jean Gattégno já acima citada) a terna mensagem da garrafa que, jogada ao mar, lança no ar a questão: "Gostaria que gostassem de mim, mas o que torna alguém gostável?". A solução para a pergunta não se daria pela matemática e nem pelo presbitério. Somente menininhas que são feitas "de especiarias finas, de açúcar cândi, e de tudo o que é ex..." (pág. 48) poderiam lhe sussurrar, com a delicadeza necessária, que o que torna uma pessoa gostável é quem gosta dela. E, dessa forma, reiteramos o início destes breves comentários: as cartas de Lewis Carroll são deliciosas.

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