São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
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O desafio da mestiçagem

JUAN CARLOS VIDAL
DO "EL PAÍS"

Aos quase 73 anos de idade, Jacques Le Goff parece estar em plena forma. Contribuiu para isso, sem dúvida, uma biografia intensa que revelou recentemente num longo livro-entrevista -"Une Vie pour l'Histoire" (Uma Vida para a História", Editions de la Découverte)-, produzido com o historiador Marc Heurgon. Nele, mostra sua múltipla personalidade, na qual as condições de historiador e cidadão se complementam.
Discípulo de Braudel, a quem sucedeu na presidência da célebre Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, Le Goff é um exemplo vivo da fecunda escola histórica dos Annales, originada a partir da revista do mesmo nome fundada em 1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre. Annales desenvolveu o programa da chamada "nova história", uma história total que abria seu discurso às contribuições das ciências humanas e naturais, que abrangia tanto o indivíduo quanto a sociedade, tanto o discurso histórico realista quanto a representação do imaginário.
Le Goff, autor de obras como "Os Intelectuais na Idade Média", "A Civilização do Ocidente Medieval", "O Nascimento do Purgatório", "O Imaginário Medieval" ou sua muito recente biografia de São Luís, que contribuíram de maneira essencial para renovar a dimensão e acrescentar ao significado da Idade Média, adotou aquela velha máxima de Marc Bloch segundo a qual "não há historiador que não seja cidadão e não há cidadão sem concepção e vivência da história. A história é algo que se faz".
Assim, seu "ofício de historiador" abrangeu quase todos os domínios e gêneros, incluindo a metodologia da história, ao mesmo tempo que nunca deixou de lado seu compromisso de historiador com a atualidade, seu compromisso de cidadão, que o levou a participar de projetos tão díspares quanto o novo traçado da rede de transportes públicos de Paris, a renovação do ensino de história nas escolas francesas, a difusão de obras de história por meio de um programa cultural de rádio, a criação de uma coleção de história da Europa, traduzida em cinco línguas, e a assessoria do processo de construção européia, desde um ponto de vista histórico.
Com esse sábio misto de conhecimento histórico, exigente compromisso moral e projeção utópica, Le Goff fala a seguir de seus projetos atuais e analisa o futuro da Europa e os perigos que ameaçam nossa civilização.
*
Pergunta - Falemos do horizonte utópico do historiador. Essa é uma orientação que deriva da figura de Marc Bloch e, de modo geral, de toda a escola dos Annales. Nesse sentido, o senhor confere grande importância à educação, à utopia educacional.
Jacques Le Goff - O senhor tem razão. Acho que, na tradição do iluminismo do século 18, temos procurado reafirmar a importância do ensino. Mas enquanto os homens daquela época atribuíam importância central à filosofia, às ciências naturais e à técnica, nós incluímos a história. Pensávamos que a reflexão sobre o desenvolvimento das sociedades humanas deveria ocupar o lugar central daquilo a que se convencionou chamar de "humanismo".
Pergunta - Nesse contexto, poderíamos falar dos trabalhos que está realizando na Academia Universal da Cultura, criada pelo Prêmio Nobel da Paz Elie Wiesel.
Le Goff - Me senti muito honrado pelo fato de Elie Wiesel ter me chamado, na minha qualidade de historiador, para participar dos trabalhos da academia. Ela é composta por cerca de 50 pessoas, número que talvez possa ser ampliado para 70, que podem ser definidas como personalidades morais.
Somos um conjunto de pessoas que pretende -digo isto sem desejo de soar grandiloquente- trabalhar para a humanidade e não nos contentarmos em tecer reflexões como intelectuais. Achamos que grande parte dos artistas e escritores são produtores de civilização e que têm um papel muito importante a desempenhar. Queremos que, por meio deles, com suas diferenças, de suas culturas distintas, se estabeleça um diálogo.
Pergunta - Qual é o objetivo da academia?
Le Goff - A academia parte de uma constatação que vem do mundo da história contemporânea: o século 20 tem sido para a humanidade, e para os europeus em particular, um século terrível, um século em que a barbárie retornou ali onde se pensava que tivesse desaparecido. E esse passado imediato oferece aos homens e mulheres, que devem ser ao mesmo tempo cidadãos e pessoas que refletem sobre a história, o grande problema da memória e do esquecimento. É aqui que o historiador tem algo a dizer.
Pergunta - Quais são os trabalhos que a academia vem empreendendo?
Le Goff - Acredito sinceramente que a academia tem sabido pensar no amanhã. Agora temos consciência de que um dos grandes problemas do século 20 será o das relações entre as culturas, sendo este um dos aspectos de mais longo alcance daquilo a que se convencionou chamar globalização. Os movimentos migratórios e os contatos entre as culturas, um fato que começou no século 16, estão a ponto de se acelerar.
Felizmente, as ondas migratórias são menos agressivas, menos guerreiras que no passado, mas podem chegar a gerar situações perigosas e dramáticas. Este será, sem dúvida alguma, um fenômeno essencial. E se quisermos solucionar esse problema, se quisermos evitar a incompreensão, a guerra, o genocídio, é preciso preparar os povos e as culturas para a única via possível de paz e justiça, que não é outra senão a da mestiçagem.
Queremos dar nossa contribuição para que os novos fenômenos nasçam sem traumas, pacificamente. Nesse contexto, atribuímos grande importância à educação, à utopia educacional, tanto assim que a academia confiou a Umberto Eco, a Jorge Semprún, ao deputado italiano Furio Colombo e a mim a tarefa de elaborar um projeto de manual de tolerância para todas as crianças em idade escolar do mundo inteiro.
Pergunta - O senhor se define como patriota europeu.
Le Goff - Sim, é verdade. Hoje em dia, um dos maiores inimigos de nossa sociedade é o nacionalismo. Mas, ao mesmo tempo, considero importante que exista uma relação afetiva legítima entre a nação na qual nascemos e a construção européia.
Assim, há uma certa Europa feita de pátrias. Uma das diferenças que se pode estabelecer entre a "nação" e a "pátria" é que a "nação" tende a excluir as demais nações, enquanto a "pátria" tende a reconhecer a legitimidade das demais pátrias. Eu tenho minha pátria, você a sua, nós nos respeitamos e tentamos fazer algo juntos.
Pergunta - Além disso, a pátria permite uma multiplicidade de identidades.
Le Goff - Com certeza. E teria um valor agregado. Se conseguíssemos construir uma pátria européia, fruto de uma Europa feita de pátrias, evitaríamos a tentação de construir uma "supernação" européia. Creio que já sofremos o suficiente com o nacionalismo e acho que seria terrível se construíssemos um nacionalismo europeu que fosse pior do que os outros. A União Européia não pode se erguer contra algo ou alguém, contra os Estados Unidos ou o Japão, no terreno econômico.
Não obstante, embora eu não seja muito protecionista, sou a favor da exceção cultural européia no âmbito do cinema. Acho que o cinema é um dos pontos fortes da civilização européia e é preciso defender a cota de cinema europeu.
Pergunta - A identidade européia não deve se basear apenas numa unidade monetária ou econômica, mas também em referências culturais e políticas?
Le Goff - Tenho plena consciência de que a economia é essencial e que, se não houver uma boa base econômica, a Europa não se construirá. Embora não seja economista, tenho a tendência a pensar que a moeda única é um passo muito importante para a União Européia.
Como historiador, sei que a anarquia monetária foi um dos grandes obstáculos da economia medieval. Além disso, a moeda possui um grande valor simbólico, não apenas na vida econômica, mas também, e a partir da consideração da identidade, na vida política, porque desde a Idade Média nos acostumamos a pensar que a moeda toma o lugar do poder real. O rei, o Estado, eram os donos da moeda e, consequentemente, aceitar uma moeda comum supõe uma perda de soberania. Hoje em dia o Reino Unido se mostra muito sensível diante da questão da moeda comum. Sem dúvida, é um dos países onde a idéia de soberania permanece mais forte.
Devo acrescentar que, por mais importante que seja a moeda única, ela não deve se transformar no único objetivo sério dos trabalhos da União. Em primeiro lugar, a moeda deve ser posta a serviço da economia e do emprego e, por outro lado, ela deveria ter dois contrapesos, um de caráter cultural-histórico e outro de caráter político. Devo dizer que Maastricht nunca me assustou.
Às vezes eu me pergunto se os inimigos do euro são pessoas que desejam uma Europa mais completa, que querem que existam contrapesos, ou se essas pessoas realmente se escondem por trás da luta contra o euro por serem contra a Europa, na realidade.
Pergunta - Jean-Marie Le Pen reproduz, em certo sentido, o núcleo do discurso dos movimentos totalitários da extrema-direita nos anos 20 e 30. Por que milhões de franceses votam nele?
Le Goff - Falarei na qualidade de historiador. Le Pen conseguiu reunir um conjunto de tradições que podem ser chamadas de extrema-direita, embora, em sua origem, sejam diferentes. Há uma dimensão racista que, a meu ver, é fruto de nossa história colonialista. Em todos os povos que foram colonizadores existe essa tendência ao fascismo e à xenofobia. Em nosso caso, nossa experiência colonizadora, nossa consciência de império se desdobrou numa consciência escravista, numa consciência de superioridade terrível.
O segundo fato é de caráter psicológico e social. Apesar da composição de seu eleitorado ser muito variada, eles têm uma característica em comum: todos eles são pessoas que perderam o trem da modernidade, são contrárias ao progresso social e histórico e buscam sua reafirmação naquilo que lhes confere uma boa apreciação de si mesmas, ou seja, sua participação na soberania francesa.
Por último, há outro componente muito importante: trata-se de pessoas que são muito sensíveis e muito hostis à corrupção. Sabemos que não são mais virtuosas do que as demais, mas são pessoas que não estão em posição de se deixarem corromper porque não possuem nem força nem poder.
Se bem que essa situação tenha uma vertente paradoxal. Não há dúvida nenhuma de que Le Pen é um homem desonesto. Há alguns meses pudemos assistir na televisão francesa a um programa muito bom que mostrou como Le Pen fez sua fortuna. Ele é certamente um homem desonesto, mas, para sermos justos, não podemos dizer que seja corrupto.
Não é alguém que tenha se deixado comprar, mas, não obstante, é alguém que se entregou a manobras imorais tradicionais que praticamente fazem parte da virtude francesa -como, no caso, tomar posse de heranças. Procuram um senhor ou uma senhora de idade e conseguem que ele ou ela lhes faça seus herdeiros. As pessoas da Frente Nacional acham que comportamentos como esse são hábeis, mas não imorais. Para eles, a corrupção só pode se dar no âmbito do dinheiro coletivo. E, segundo esse raciocínio, Le Pen conseguiu seu dinheiro por meio de empresas individuais. E isso, além de não ser grave, é muito francês.

Tradução de Clara Allain.

Onde encomendar "Une Vie pour l'Histoire" (Uma Vida para a História), de Jacques Le Goff (Editions de la Découverte), pode ser encomendado à Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, fundos, tel. 011/231-4555, São Paulo).

Livros do autor no Brasil
"O Apogeu da Cidade Medieval"
"A Nova História"
"Mercadores e Banqueiros da Idade Média" (todos pela Ed. Martins Fontes)
"História e Memória" (Ed. da Unicamp)
"História - Novas Abordagens" (com Pierre Nora, Ed. Francisco Alves)

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