São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
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O que é mesmo um clássico?

BORIS FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se fosse possível, do ponto de vista editorial, colocar lado a lado a resenha que escrevi sobre o livro de Maria Sylvia Carvalho Franco "Homens Livres na Ordem Escravocrata" (Mais!, 7/9) e a resposta com que me honrou a autora (Mais!, 14/9), não teria nada por acrescentar ao assunto. Os textos falariam por si. Como isso não é possível, comento aqui alguns aspectos da aludida resposta que me parecem dignos de esclarecimento.
Começo pelo mérito atribuído ao livro que, para minha surpresa, feriu profundamente a suscetibilidade de Carvalho Franco. Se perguntarmos a 20 especialistas na área de ciências humanas o que é um clássico, estou seguro de que a resposta será mais ou menos a seguinte: um livro muito relevante, marco de referência obrigatória para os trabalhos subsequentes e que já realizou um percurso no tempo -maior ou menor, conforme o caso-, permitindo que a condição de clássico se afirmasse.
Aqui vão alguns exemplos. São clássicos livros como "Formação do Brasil Contemporâneo", de Caio Prado Jr., "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, e, a meu ver, a dupla "A Construção da Ordem" e "Teatro de Sombras", de José Murilo de Carvalho. Cito estes dois últimos trabalhos porque há alguns meses, também no Mais!, tive a oportunidade de resenhá-los, rotulando-os de clássicos, o que não me impediu de discordar de algumas interpretações do autor. Esclarecido esse ponto, incluo "Os Homens Livres na Ordem Escravocrata" entre os clássicos, por todas as qualidades indicadas na resenha e que julgo desnecessário reproduzir.
Mas o problema reside no fato de que Carvalho Franco parece considerar seu livro uma obra imune a controvérsias, sendo descartáveis os estudos posteriores que versam sobre o assunto. Em poucas palavras, é o caso de perguntar se a autora acredita ter escrito um texto fundamentalista, colocando-nos diante do inescapável dilema: "Crê ou morre"?
Apesar da tentativa de Carvalho Franco no sentido de demonstrar que se situa em plano teórico diametralmente oposto ao autor destas linhas, isso não acontece. Tal como ela, divirjo das teorias dualistas na explicação da natureza do latifúndio, tendo feito na resenha uma menção expressa a respeito; tal como ela, sustento que o sentido básico da colonização é dado pela grande lavoura de exportação alicerçada no trabalho escravo; tal como ela, afirmo que o latifúndio colonial de base escravista se define como forma socioeconômica integrada ao "sistema mundi" do capitalismo comercial; tal como ela, caracterizo, de um modo geral, as relações entre sociedade e Estado, ao longo do século 19, como sendo de instrumentação do Estado pelos interesses privados e não como de imposição de um estamento burocrático sobre as classes e os grupos sociais.
Não obstante, tinha de informar o leitor da existência de uma interpretação do nosso passado colonial e do século 19 que procura realçar a importância de um contingente de homens livres, dedicados à produção para o mercado interno; da mesma forma, tinha de informar o leitor da publicação de muitos trabalhos sobre esses homens livres e pobres cujo significado social foi muitas vezes obscurecido, a ponto de mesmo autores do calibre de Caio Prado Jr. colocá-los em uma categoria indiscriminada de "desclassificados, vadios, inúteis, inadaptados, indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma" (ver "Formação do Brasil Contemporâneo", págs. 279 e 280, terceira edição).
Entretanto, perguntaria o leitor, dadas as várias convergências, essa querela não passaria de um mal-entendido que o resenhista se apressou em retificar? Infelizmente, não se trata disso. Maria Sylvia Carvalho Franco não está interessada em esclarecer o alcance de concordâncias e diferenças e sim em construir um boneco de palha e tocar-lhe fogo, na esperança de vê-lo contorcer-se e se transformar em cinzas.
Por esse caminho, sou transformado em defensor da "ortodoxia" e, não por acaso, "Resposta à ortodoxia" é o título de seu texto. Que "ortodoxia" estaria eu representando? Aquela que separa radicalmente capitalismo e escravidão, com o torpe objetivo de ressaltar, em nossos dias, a emergência do capitalismo, transfigurado em agente da modernização. Reproduzindo suas palavras, "ruiu o Muro de Berlim, mas a ideologia reitera sempre os mesmos caminhos".
Fui assim convertido em defensor do marxismo ortodoxo, vulgar, ou que outro qualificativo tenha, associado à ideologia stalinista (não exagero, a referência ao Muro é inequívoca). Quem conhece o que penso, aquilo que escrevi e um pouco de minha biografia sabe que jamais defendi uma visão serial da história brasileira, passando pelas etapas do escravismo, da formação social semifeudal até se chegar à etapa do capitalismo. Exemplificando, em "A Revolução de 1930", pequeno livro escrito em 1969, critiquei duramente essa visão da nossa História, vinculada na época à doutrina do PCB, como qualquer estudante razoavelmente informado sabe.
Ninguém ignora que nossas interpretações do passado, sejamos especialistas ou não, têm a ver com as concepções que temos acerca do presente. Mas Carvalho Franco não se prende a esta verdade banal. Trata, ao contrário, de me mover um processo de intenções, pretendendo ligar minhas concepções sobre a História do país ao meu apoio à política de reformas do atual governo. Deseja tanto isso que faz um curto circuito histórico, ao identificar relações socioeconômicas vigentes em meados do século 19 com as que definem o Brasil atual, como se muita água não tivesse corrido sob a ponte.
Gostaria de ressaltar a esse respeito um ponto: o inconformismo sobre o meu reparo acerca do que chamei de "robotização" do homem livre, ou mais especificamente do sitiante. Recordando, depois de acentuar que Carvalho Franco demonstra, com muita argúcia, que entre fazendeiro e sitiante forjou-se uma relação de aparente igualdade, cimentada pelo compadrio, ousei dizer que não concordo, entretanto, com uma visão que nega a possibilidade do sitiante ter consciência, mesmo fragmentada, da natureza da dominação. Este ponto é importante porque a afirmação pode ser estendida a outros grupos, classes ou mesmo indivíduos.
Não ignoro que, muitas vezes, as pessoas se deixam dirigir por ilusões, recebendo-as como se fossem de sua própria iniciativa e para o seu próprio bem. Mas essa constatação não me leva ao ponto de negar às pessoas a condição de sujeito capaz de escolhas e decisões, cujo alcance é variável, em função de um leque de fatores sociais e culturais. Por outras palavras, se não assumo o populismo, do gênero "o povo, na sua sabedoria intuitiva, encontra o caminho que melhor lhe convém", também não aceito a tese que o coloca apenas como objeto de dominação, à espera de que partidos de vanguarda ou intelectuais iluminados lhe mostrem o caminho da luz.
Por último, quero esclarecer que escrevi estas linhas em consideração ao leitor, por ter-me convencido de que devia voltar a alguns pontos da resenha e discutir os pontos mais sensíveis -digamos assim- da resposta. Também em consideração ao leitor e a mim mesmo, expresso minha intenção de não voltar ao assunto.

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