São Paulo, quarta-feira, 01 de setembro de 2004

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ERUDITO/CRÍTICA

Gidon Kremer, do barroco ao contemporâneo, até o tango

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Gidon Kremer não é só um dos maiores violinistas, mas um dos músicos mais interessantes da atualidade. Com seu prestígio consolidado, tem a audácia de programar compositores menos conhecidos, seja do presente, seja do passado. Toca com músicos novos e novíssimos com tanta ou maior freqüência do que com as estrelas de sua própria geração (nasceu em 1947). Tudo isso era incentivo certo para ir ao Municipal anteontem, escutar o letão interpretando Bach, Arvo Pärt e Piazzolla.
O estoniano Pärt (1935) deve ser o compositor mais tocado do repertório contemporâneo. Uma peça como "Fratres", de 1977, foi usada até como trilha de filme (do diretor Atom Egoyan), na mesma versão para violino, piano e percussão que Kremer tocou com seus jovens companheiros da Kremerata Báltica -conjunto que ele criou em 1997 e com quem esteve em São Paulo há dois anos. Já foi gravada muitas vezes, também (merece destaque a versão com orquestra interpretada por Gil Shaham, num deslumbrante disco da série "20/21" da Deutsche Grammophon). E a cada vez confirma sua força, feita de tão pouco para sustentar quase tudo.
É uma das peças inaugurais da técnica de "tintinabuli" ("tintinábulos", sinos). Uma nota serve de base para melodias que se deslocam lentamente em torno a ela, harmonizadas pelas notas do acorde tonal centrado naquela mesma base. Começar o programa na quinta com essa peça foi um gesto característico de Kremer, e obrigou a platéia a um silêncio digno dos silêncios e comoções da música -só perturbado pelo incorrigível ruído, ou rugido, do ar-condicionado.
Se depois a "Chaconne" para violino solo, de Bach (1685-1750), tinha alguma coisa de música contemporânea da Estônia não era mera coincidência. Quem tem uma relação tão viva com a música do seu próprio tempo como Kremer necessariamente há de ver com outros olhos a música de qualquer outro período. Para além do virtuosismo digital, seu Bach sem ornamentos (nem na última cadência) guardava relações inusuais de tempo entre uma seção e outra, explorava grandes diferenças de dinâmica e fazia de um novo ascetismo o idioma mais antigo e expressivo.
Algo dessa mesma mistura de contemporâneo e arcaico se ouviu também na interpretação da "Fantasia Cromática e Fuga" pelo pianista lituano Andrius Zlabys. É o barroco pós-moderno do leste, vigoroso e corajoso, sem problemas morais com a inautenticidade. Zlabys tem um som gigantesco, que ele faz contrastar, por um lado, com as doçuras (nas seqüências de arpejos) e, por outro, com as angulosidades (na fuga).
A mistura era bem outra nas "Três Invenções", também de Bach, usadas como material de improvisos para vibrafone solo pelo virtuosístico Andrii Pushkarov (da Ucrânia). Virtuosismo de baquetas, virtuosismo de ritmo e virtuosismo de idéia: elaborações fluentes à maneira de Bill Evans, Jacques Loussier e Oscar Peterson. Mas aqui o concerto já mudava de caráter e dirigia a gente para a segunda parte, com as sete peças curtas de Astor Piazzolla (1921-92).
O violinista é um verdadeiro apóstolo do "nuevo tango", que ele toca e grava há anos, com sinceridade e simpatia. Mas sete vezes sedução e sete vezes nostalgia foi um pouco demais -e de menos, para quem ficou com fome de ouvir Kremer exigindo mais de si, e de todos nós.


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