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ERUDITO/CRÍTICA
Gidon Kremer, do barroco ao contemporâneo, até o tango
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Gidon Kremer não é só um
dos maiores violinistas, mas
um dos músicos mais interessantes da atualidade. Com seu prestígio consolidado, tem a audácia de
programar compositores menos
conhecidos, seja do presente, seja
do passado. Toca com músicos
novos e novíssimos com tanta ou
maior freqüência do que com as
estrelas de sua própria geração
(nasceu em 1947). Tudo isso era
incentivo certo para ir ao Municipal anteontem, escutar o letão interpretando Bach, Arvo Pärt e
Piazzolla.
O estoniano Pärt (1935) deve ser
o compositor mais tocado do repertório contemporâneo. Uma
peça como "Fratres", de 1977, foi
usada até como trilha de filme (do
diretor Atom Egoyan), na mesma
versão para violino, piano e percussão que Kremer tocou com
seus jovens companheiros da
Kremerata Báltica -conjunto
que ele criou em 1997 e com quem
esteve em São Paulo há dois anos.
Já foi gravada muitas vezes, também (merece destaque a versão
com orquestra interpretada por
Gil Shaham, num deslumbrante
disco da série "20/21" da Deutsche
Grammophon). E a cada vez confirma sua força, feita de tão pouco
para sustentar quase tudo.
É uma das peças inaugurais da
técnica de "tintinabuli" ("tintinábulos", sinos). Uma nota serve de
base para melodias que se deslocam lentamente em torno a ela,
harmonizadas pelas notas do
acorde tonal centrado naquela
mesma base. Começar o programa na quinta com essa peça foi
um gesto característico de Kremer, e obrigou a platéia a um silêncio digno dos silêncios e comoções da música -só perturbado
pelo incorrigível ruído, ou rugido,
do ar-condicionado.
Se depois a "Chaconne" para
violino solo, de Bach (1685-1750),
tinha alguma coisa de música
contemporânea da Estônia não
era mera coincidência. Quem tem
uma relação tão viva com a música do seu próprio tempo como
Kremer necessariamente há de
ver com outros olhos a música de
qualquer outro período. Para
além do virtuosismo digital, seu
Bach sem ornamentos (nem na
última cadência) guardava relações inusuais de tempo entre uma
seção e outra, explorava grandes
diferenças de dinâmica e fazia de
um novo ascetismo o idioma
mais antigo e expressivo.
Algo dessa mesma mistura de
contemporâneo e arcaico se ouviu também na interpretação da
"Fantasia Cromática e Fuga" pelo
pianista lituano Andrius Zlabys. É
o barroco pós-moderno do leste,
vigoroso e corajoso, sem problemas morais com a inautenticidade. Zlabys tem um som gigantesco, que ele faz contrastar, por um
lado, com as doçuras (nas seqüências de arpejos) e, por outro,
com as angulosidades (na fuga).
A mistura era bem outra nas
"Três Invenções", também de
Bach, usadas como material de
improvisos para vibrafone solo
pelo virtuosístico Andrii Pushkarov (da Ucrânia). Virtuosismo de
baquetas, virtuosismo de ritmo e
virtuosismo de idéia: elaborações
fluentes à maneira de Bill Evans,
Jacques Loussier e Oscar Peterson. Mas aqui o concerto já mudava de caráter e dirigia a gente
para a segunda parte, com as sete
peças curtas de Astor Piazzolla
(1921-92).
O violinista é um verdadeiro
apóstolo do "nuevo tango", que
ele toca e grava há anos, com sinceridade e simpatia. Mas sete vezes sedução e sete vezes nostalgia
foi um pouco demais -e de menos, para quem ficou com fome
de ouvir Kremer exigindo mais de
si, e de todos nós.
Avaliação:
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