São Paulo, domingo, 03 de fevereiro de 2008

Texto Anterior | Índice

comentário

Ceia acaba em gincana com ares de trem-fantasma

NINA LEMOS
COLUNISTA DA FOLHA

"Agora, vamos colocar as vendas nos olhos." Não, não estamos em um clube sadomasoquista, mas em um restaurante sofisticado dos Jardins. Mesmo assim, o clima é de excitação, com direito a gritinhos e risos de nervoso.
Parece que vamos entrar num trem-fantasma gastronômico. Tudo porque comeremos às escuras, sem enxergar absolutamente nada.
A idéia é que o prato seja saboreado com mais empenho. Só que não é isso o que acontece. A preocupação em conseguir comer usando garfo e faca passa a ser maior que tudo. Se você enfia algo na boca, imediatamente se considera vitorioso e esperto, como se ganhasse uma gincana. E a competição começa com bebida (mais fácil) e evolui para a entrada.
Perco pontos já na segunda prova... Colocar com as mãos duas tortinhas na boca é fácil. Engolir um pepino recheado também. Só que depois percebo que o recheio havia escorrido e transformado a toalha branca em algo parecido com um uniforme de açougueiro. Detalhe: nenhuma pessoa do lado tinha cometido a mesma gafe.
Mas a maior vantagem de comer de olhos fechados é que você está cercada por outros vendados. E o seu mico passa batido. A não ser que seu vizinho de mesa seja tão espírito de porco (como eu) e resolva levantar a venda algumas vezes só para ver que outras pessoas também cometem gafes.
Todos que eu vi tentavam cortar a carne com o lado errado da faca. Hora da vingança. A vegetariana aqui recebe um prato mais fácil de comer... Mas o que é isso? Primeiro acho que é um risoto.
A repórter de gastronomia da Folha sente o cheiro e "me avisa" que tem curry. Claro, então é um cuscuz marroquino. Quando tiro a venda, dou de cara com um arroz com curry, cenoura (que eu não tinha identificado) e broto de feijão. Comi tudo sem saber o que era.
Na hora da sobremesa, sinto-me uma criança de dois anos tentando comer pela primeira vez. Dou uma colherada, e a colher volta vazia. Tento outra, vazia novamente. Acabo comendo a calda antes do sorvete.
Além de acertar a boca, é difícil ouvir a conversa dos outros. Se você tem esse vício, prepare-se. Tudo o que consegue escutar em um restaurante lotado com os olhos vendados é uma massa sonora. Bem, ao menos dá para fofocar. Pois, se os outros também estão vendados, não vão escutar o que disser.
Terminado o jantar, alívio. Andamos de trem-fantasma e ganhamos uma gincana ao mesmo tempo. Difícil é lembrar, depois de tanto esforço, do gosto da comida.


Texto Anterior: Jantar às cegas aguça os sentidos e provoca risos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.