São Paulo, quinta-feira, 04 de novembro de 2004

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CRÍTICA

Longa é vítima da globalização que reflete

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Se eu tivesse de fazer um documentário sobre a cidade de São Paulo, provavelmente carregaria a mão nos contrastes visuais: os prédios da Berrini e as favelas ali perto, as baladas e os mendigos, o shopping Iguatemi e algum boteco de periferia. A cidade registrada pelos cineastas de "Bem-Vindo a São Paulo" -quase 20 e quase todos estrangeiros- é bem mais homogênea, desanimada e quieta.
Nesta colagem de curtas, predominam as imagens do centrão, com prédios caindo aos pedaços, gente parada nos bancos de praça, bancas de feira sendo armadas de madrugada. "Aquário", do malaio Tsai Ming-liang, focaliza a célebre favela vertical do edifício São Vito. "Novo Mundo", de Jim McBride, destaca as velhas casas do Bexiga.
O interior da catedral da Sé, a imobilidade de um domingo no Anhangabaú e a incansavelmente citada esquina da Ipiranga com a São João sucedem-se com melancolia nos trechos assinados, respectivamente, pelo australiano Phillip Noyce, pelo finlandês Mika Kaurismäki e pela portuguesa Maria de Medeiros.
Os episódios são intercalados por comentários bastante banais a respeito dos males da globalização, do genocídio indígena e da destruição do ambiente, lidos com algum desânimo por Caetano Veloso.
Fotos antigas do centro da cidade são superpostas, com bons efeitos de computador, a imagens dos dias atuais. A idéia seria mostrar a rapidez das transformações urbanas, a voracidade do progresso etc.
Aos olhos dos estrangeiros, contudo, a imagem de uma "Paulicéia desvairada" faz pouco sentido. Quem mais explora as ironias da cidade é o alemão Wolfgang Becker (de "Adeus, Lênin"), que filma a correria da 23 de Maio, contrastando-a (sempre a volta ao passado) com um sebo de discos em Pinheiros.
Não faltam obviedades de simbologia: para um falante de língua inglesa, um outdoor de calcinhas Hope (esperança) em meio ao cenário urbano degradado parecerá uma descoberta sutil. Para quem passa todo dia pelo Minhocão, o efeito é bem menor.
"Bem-Vindo a São Paulo" termina, assim, vitimado pela globalização de que é reflexo. A contribuição de Kiju Yoshida (uma longa entrevista em japonês com uma garçonete sansei) terá provavelmente interesse para o público de seu país, mas cai no vazio para o espectador brasileiro.
Volta e meia topamos com cenas -um catador de papel com seu cachorro, tomates na feira, a água da chuva nas calçadas- aos quais os diretores parecem ter atribuído profunda e lírica significação, que entretanto nos escapa.
O melhor de "Bem-Vindo a São Paulo" -além da exata e graciosa música de André Abujamra- está nos trechos dos autores brasileiros. Em "Esperando Abbas", Leon Cakoff conduz uma engraçada e pungente entrevista com um morador de rua, que havia sido filmado por Abbas Kiarostami anos atrás.
Em "Odisséia", a carioca Daniela Thomas alterna cenas do Minhocão de dia e de noite, num domingo e durante a semana: eis uma pequena proeza de utopia e de denúncia, construída com simplicidade e concisão. Em momentos assim, infelizmente raros, o valor estético de "Bem Vindo a São Paulo" se impõe.


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