São Paulo, quarta-feira, 04 de dezembro de 2002

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"VARIAÇÃO"

Lara Pinheiro coloca em cena a voracidade

INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA

O reflexo do espelho tem mil faces, das mais vorazes às mais sutis. "Variação", dirigida por Lara Pinheiro, que estreou quarta passada no Centro Cultural São Paulo, coloca em cena "a relação entre imagem pessoal, idealizações e identidades". O espetáculo faz parte da série "Semanas de Dança" e divide a noite com "Alfredo", da Cia Druw.
"Variação" é uma criação conjunta de Lara Pinheiro e Gabriela Gonçalves, duas intérpretes com características muito pessoais e tempos de dança diferentes, o que cria um contraponto interessante em cena. Os movimentos vão da avidez e sofreguidão do encontro às minúcias e mistérios da solidão -dois pólos, livremente inspirados na leitura de "Palomar", de Italo Calvino (1923-85).
A trilha musical (To Rococo Rot e I. Sound) é mais um elemento dessa trama: dança e música dialogam, e o silêncio, ou o som dos gestos faz parte integral das cenas.
À esquerda do palco fica um jogo duplo de espelhos, marcando um quadrado no chão; no alto, à direita, contrapõe-se a ele um quadrado de luz vermelha. Mais duas cadeiras e um sofá compõem todo o cenário que, assim como a música, tem parte marcante na coreografia. Cada ação das bailarinas intervém no espaço de determinada maneira e estabelece novas relações com o redor. Movimentos e sensações são reestruturados, então, de acordo com o material, o lugar, o volume e o espaço, afetando as relações entre as intérpretes e de cada uma com seu próprio movimento.
Dançando e se deslocando sobre o espelho os gestos são íntimos, numa conversa delicada com a própria imagem, que às vezes se vê da platéia, às vezes não. Fora desse limite, os gestos ganham amplitude e força. O ponto alto do espetáculo é o solo de Lara Pinheiro entre os objetos: ali vem à mostra seu trabalho coreográfico com as dobradiças do corpo, valorizando os contrapesos e a fluidez de movimentos.
Já a repetição final de Gabriela Gonçalves -lançando-se sobre Pinheiro, que a joga no sofá, que cai no chão e assim, pinabauschescamente por diante, com ou sem sofá- pode acabar sugerindo mesmo uma queda no vazio. Quer dizer: a cena destoa do que o espetáculo nos ensinou a esperar.
Ou será que é outro espelho? Uma das provocações de "Variação" é variar nosso próprio ponto de vista, que pode se tornar ponto de fuga. Ou ponto de interrogação. Ou, ainda, de exclamação, como as bailarinas merecem.
"Alfredo", da Cia. Druw, já foi brevemente comentado na Folha (em fevereiro). Com humor e ironia, a coreografia explora a relação com um personagem imaginário. Quem está por trás, ou no fundo, ou por dentro, ou que metáfora for para indicar o que em nós se esconde de nós, e em nós nos forma? A pergunta invoca não só os fantasmas da psicanálise, mas os da própria dança. Seja quem for, amadureceu do início do ano para cá.
Entre espelhos e fantasmas, a dança paulista vai construindo suas sutilezas, com salutar voracidade.

Variação



   
Onde: Centro Cultural São Paulo (r. Vergueiro, 1.000, tel. 3277-3611)
Quando: de qua. a sáb., às 21h; dom., às 20h (última apresentação)
Quanto: de R$ 4 a R$ 8



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