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MÚSICA ERUDITA/CRÍTICA
Pipocas modernistas e paixões antigas com o Quarteto da Cidade
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Na cidade onde tudo só piora,
a música, quem diria, só melhora. Agora é o Quarteto de Cordas da Cidade que inaugura uma
série de concertos no Espaço Promon, com programação até dezembro. Inaugura, não: inaugurou em alto estilo, anteontem, tocando Villa-Lobos e Brahms.
Num país de memória curta e
instituições vacilantes, é comovente assistir a um quarteto cuja
formação original remonta a 1935
(era o Quarteto Haydn, fundado
por Mário de Andrade). Duplamente comovente quando se escuta o "Quarteto nš 3" de Villa-Lobos (1887-1959), executado no
Municipal durante a Semana de
Arte Moderna, em 1922. Triplamente já seria exagero, mas Betina Stegmann, Nelson Rios, Marcelo Jaffé e Robert Suethölz merecem crédito próprio, nominal.
O "Quarteto nš 3" é o "Pipocas",
apelido consagrado do segundo
movimento, em "pizzicato". Mas
o que o Quarteto da Cidade fez
bonito, mesmo, foi o terceiro, intimista -nada de pipoca e muito
de chuva oblíqua. Betina tem uns
tons que não saem da cabeça da
gente: o violino toca para dentro,
e a música parece em busca de outra, intuída nalguma escuridão
dentro de si.
Dali em diante, o quarteto entrou no ritmo do jogo. Alucinante
no último movimento, segundo
violino e viola serrando semicolcheias, com acentos de batucada,
primeiro violino e violoncelo em
oitavas, num rasga-coração. Tom
Jobim com certeza gostava disso.
Tão bom quanto "Matita Perê".
Lances: Marcelo Jaffé apontando a viola na nossa direção, como
quem diz "vejam só"; Suethölz
sorrindo para Betina depois de
uma passagem juntos; Nelson
Rios mergulhando numa frase, na
direção da partitura; Betina com
os lábios apertados e a testa franzida pela intensidade da música.
Depois todos de pé, meio sem jeito, agradecendo sem soberba.
Na segunda parte, a música das
músicas, pelo compositor dos
compositores. Era o "Quinteto
para Clarinete e Cordas" de
Brahms (1833-97), com o solista
convidado Luís Eugênio Afonso
("Montanha"). Composto em
1891, o "Quinteto" já deixou quase tudo para trás. Há uma foto de
Brahms em 1892, em Viena, com
sua amiga Alice Barbi. De chapéu
coco, com a barba de profeta, ele
olha para nós e sorri -sorri do lado de lá. O "Quinteto" tem algo
desse sorriso, alguma última graça de paixão, no limite do entendimento total.
Montanha tocou Brahms com
discrição e carinho; tocou com
gosto. Foi cuidadoso com as notas
e cuidadoso com a música (o que
não é a mesma coisa). Alguém diria que às vezes também é preciso
perder a cautela, e alguém diria
que o Quarteto da Cidade também poderia se dar mais chances
de exuberância. Nos momentos
em que chegou lá, ninguém diria
mais nada, entregue às razões que
nem o coração conhece.
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