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São Paulo, quinta-feira, 08 de maio de 2003

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MÚSICA ERUDITA/CRÍTICA

Pipocas modernistas e paixões antigas com o Quarteto da Cidade

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Na cidade onde tudo só piora, a música, quem diria, só melhora. Agora é o Quarteto de Cordas da Cidade que inaugura uma série de concertos no Espaço Promon, com programação até dezembro. Inaugura, não: inaugurou em alto estilo, anteontem, tocando Villa-Lobos e Brahms.
Num país de memória curta e instituições vacilantes, é comovente assistir a um quarteto cuja formação original remonta a 1935 (era o Quarteto Haydn, fundado por Mário de Andrade). Duplamente comovente quando se escuta o "Quarteto nš 3" de Villa-Lobos (1887-1959), executado no Municipal durante a Semana de Arte Moderna, em 1922. Triplamente já seria exagero, mas Betina Stegmann, Nelson Rios, Marcelo Jaffé e Robert Suethölz merecem crédito próprio, nominal.
O "Quarteto nš 3" é o "Pipocas", apelido consagrado do segundo movimento, em "pizzicato". Mas o que o Quarteto da Cidade fez bonito, mesmo, foi o terceiro, intimista -nada de pipoca e muito de chuva oblíqua. Betina tem uns tons que não saem da cabeça da gente: o violino toca para dentro, e a música parece em busca de outra, intuída nalguma escuridão dentro de si.
Dali em diante, o quarteto entrou no ritmo do jogo. Alucinante no último movimento, segundo violino e viola serrando semicolcheias, com acentos de batucada, primeiro violino e violoncelo em oitavas, num rasga-coração. Tom Jobim com certeza gostava disso. Tão bom quanto "Matita Perê".
Lances: Marcelo Jaffé apontando a viola na nossa direção, como quem diz "vejam só"; Suethölz sorrindo para Betina depois de uma passagem juntos; Nelson Rios mergulhando numa frase, na direção da partitura; Betina com os lábios apertados e a testa franzida pela intensidade da música. Depois todos de pé, meio sem jeito, agradecendo sem soberba.
Na segunda parte, a música das músicas, pelo compositor dos compositores. Era o "Quinteto para Clarinete e Cordas" de Brahms (1833-97), com o solista convidado Luís Eugênio Afonso ("Montanha"). Composto em 1891, o "Quinteto" já deixou quase tudo para trás. Há uma foto de Brahms em 1892, em Viena, com sua amiga Alice Barbi. De chapéu coco, com a barba de profeta, ele olha para nós e sorri -sorri do lado de lá. O "Quinteto" tem algo desse sorriso, alguma última graça de paixão, no limite do entendimento total.
Montanha tocou Brahms com discrição e carinho; tocou com gosto. Foi cuidadoso com as notas e cuidadoso com a música (o que não é a mesma coisa). Alguém diria que às vezes também é preciso perder a cautela, e alguém diria que o Quarteto da Cidade também poderia se dar mais chances de exuberância. Nos momentos em que chegou lá, ninguém diria mais nada, entregue às razões que nem o coração conhece.


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